São Paulo, Segunda-feira, 06 de Dezembro de 1999


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FERNANDO GABEIRA

Um olhar sobre o Brasil que anda em duas rodas


Uma das previsões que faço para o futuro dominado pela Internet é que as ruas estarão cheias de entregadores de pizza. Na verdade, não só o número de entregadores de pizza está crescendo, mas também o de mensageiros que trazem e levam coisas que nem o fax nem a rede podem enviar.
Em algumas capitais e em centenas de cidades do Brasil, há um outro fenômeno que escapou um pouco da mídia: os mototáxis, que cobram a tarifa de R$ 1 e mais R$ 0,25 por quilômetro. Em Fortaleza e em Goiânia, lugares por onde passei recentemente, eles são uma presença decisiva, imprimindo um novo traço ao panorama urbano do Brasil.
O instrumento de trabalho desses milhares de garotos que sobrevivem, independentemente de um emprego regular, é uma moto de 125 cilindradas, a Titan da Honda. É de longe a moto mais vendida do Brasil, e dizem que seu motor é o que aguenta uma batida diária de até 400 quilômetros.
Nas estradas do interior, vejo que são usadas também para viagens, não muito distantes do perímetro urbano, e se tornaram para muitos uma substituta moderna do Fusca, o velho modelo da Volks, que Itamar tentou ressuscitar e volta agora numa versão sofisticada.
Aproveitando uma viagem a São Paulo, visitei o salão Duas Rodas, no Anhembi, e constatei algo que as revistas especializadas há muito vinham apontando: o Brasil é hoje um mercado importante para as grandes empresas mundiais do setor.
Superesportivas, algumas das motos exibidas no salão chegam a alcançar a velocidade de 300 quilômetros por hora. Ao vê-las, no salão e nas ruas do Rio, senti-me um pouco confuso. De fato, é um grande progresso alcançar os 300 quilômetros horários. Mas o que significa isso nas precárias estradas do Brasil?
Quem observar as grandes cidades brasileiras, nos fins-de-semana, vai constatar um outro fenômeno recente. Profissionais liberais rodam pelas ruas com suas motocicletas do tipo que o cinema consagrou no filme "Easy Rider". São as cruisers, motos potentes, entre 600 e 1.500 cilindradas, que as pessoas usam para grandes viagens.
Essas motos sempre existiram no Brasil, houve um momento no qual havia três BMWs em todo o país. Agora, entraram em grande número e, no salão que visitei, estavam todas lá, variando de um preço de R$ 12 mil a US$ 20 mil.
A abertura desse nicho de mercado trouxe duas novas lojas da Harley Davidson ao Rio. A célebre marca americana, que alguns admiradores chegam a tatuar no braço, explora não só as motos como sua imagem, em camisetas, acessórios e até um perfume masculino.
Apesar de já estar montando um modelo no Brasil, a Harley explora mais a atmosfera, como se essa fosse a grande mercadoria a ser lançada -viver um pouco da lenda das motos e seus pilotos tatuados, sair com o perfume ou sua marca no peito.
Toda a explosão dessa indústria no Brasil, com o lado positivo de uma pequena moto valente abrir fontes de renda para milhares de garotos, não pode passar em branco. Ela pede uma cultura de segurança.
Não tem sentido ver milhares de garotos saírem por aí sem que tenham sido preparados para usar o instrumento.
Entidades, debates, tudo isso deve reclamar das grandes empresas que entraram no mercado um investimento em segurança. Nos Estados Unidos, elas financiam uma fundação que trata exclusivamente de segurança ao pilotar.
No Brasil, agora há um debate meio ignorado pela grande mídia sobre a possibilidade de, aos 16 anos, haver a liberação para se pilotara uma scooter, essas motos de 50 a 100 cilindradas, descendentes, de uma certa forma, das vespas e lambretas italianas.
A indústria está preparada, pois no salão mostrou inúmeras opções, inclusive com uma pista de teste. Pelo que observei, a maioria dos visitantes se colocou a favor. Uma decisão dessas seria mais cautelosa, no meu entender, se viesse no bojo de uma grande campanha sobre segurança em moto.
Importamos um novo tipo de veículo. Não dá para importar normas de segurança . Num lugar como o nosso, jamais inventaríamos uma moto que corra 300 quilômetros por hora. Certas realidades, como por exemplo o asfalto onde rola o sonho de liberdade, têm de ser levadas em conta, sob risco de um suicídio cultural, ao pé da letra.




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