São Paulo, sábado, 07 de fevereiro de 2004

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O romance "Tempo de Migrar para o Norte", de Tayeb Salih, narra a história de um sudanês dividido entre a Europa e os países do Nilo

Além da fronteira

Ian West/Associated Press
Victoria Station, em Londres, cidade que serve de cenário para parte do romance "Tempo de Migrar para o Norte", do sudanês Tayeb Salih, cuja trajetória biográfica sobrepõe-se à do protagonista

Leia a seguir trechos do romance "Tempo de Migrar para o Norte", do escritor sudanês Tayeb Salih, que será lançado pela editora Planeta no mês que vem.
 
"Ela estava no cais quando o navio partiu de Alexandria.
Vi-a de longe acenando para mim o seu lenço, que depois colhia suas lágrimas. Ao seu lado, estava seu marido, com a mão na cintura.
Apesar da distância, consegui ver a pureza de seus olhos azuis. No entanto, não senti tristeza, eu queria chegar o mais rápido possível a Londres, uma outra montanha maior do que o Cairo, sem saber, porém, quantas noites ficaria por lá. Tinha 15 anos, mas parecia ter 20, cheio de mim, feito bolsa d'água estufada. Para trás, havia deixado uma história de sucesso escolar.
Minha única arma afiada estava dentro do crânio e um sentimento frio e gélido repousava no meu peito, como se ele fosse moldado de rochas. Quando o mar engoliu a praia, as ondas se revoltaram contra o navio e o horizonte se azulou diante de nós, senti uma familiaridade total com o mar. Conhecia aquele gigante verde e infinito, como se rugisse entre minhas costelas.
Durante toda a viagem, tive a sensação de não pertencer a nenhum lugar, de estar sozinho, rodeado pela eternidade ou pelo nada. O rosto do mar quando se aquietava era uma miragem diferente, mudando sempre como a máscara no rosto de minha mãe.
Lá também havia um enorme deserto verde-azulado que me chamava, me chamava. Foi esse estranho chamamento que me conduziu até a costa de Dover, a Londres e, também, à tragédia.
Quando, mais tarde, fiz o mesmo trajeto na viagem de volta, sempre me perguntava se teria sido possível evitar algo do que ocorrera. Mas a corda do arco estava esticada e não havia como não atirar a flecha. Olhei para a direita e para a esquerda, para o verde-escuro, para as vilas saxônicas ao redor das colinas, para os telhados vermelhos e arqueados feito lombo de boi. Havia um véu transparente de neblina que cobria os vales.
Pensei: quanta água e quanto verde há nesse país? E todas essas cores! O lugar tem um cheiro estranho, como o do corpo de Mrs. Robinson. Os sons caem no meu ouvido nítidos, como o bater de asas de uma ave.
Esse é um mundo organizado: as casas, os campos e as árvores são desenhados de acordo com um projeto. Nem os rios correm tortuosos, mas sim ordenadamente em leitos artificiais. O trem parava por minutos na estação e as pessoas entravam e saíam rapidamente, sem alvoroço. Pensei na minha vida no Cairo.
Nada imprevisível me aconteceu por lá. Havia conseguido apenas aumentar meus conhecimentos e passar por alguns episódios insignificantes. Uma colega havia gostado de mim e logo em seguida me odiado. Dissera: "Você não é um ser humano, é uma máquina surda". Costumava passear pelas ruas do Cairo; ia à opera e ao teatro. Um dia atravessei o Nilo a nado. Nada de especial aconteceu, salvo a bolsa d'água cada vez mais estufada e a corda do arco mais e mais esticada.
Não havia como impedir a flecha de se lançar para outros horizontes desconhecidos. Olhava a fumaça do trem dissipando-se no vento, misturando-se com a neblina dos vales. Adormeci. Sonhei que rezava sozinho na mesquita de Qalaa, iluminada por milhares de candelabros. O mármore vermelho incandescia e ali estava eu rezando sozinho.
Despertei com o aroma de incenso nas minhas narinas, o trem aproximava-se de Londres. Cairo era uma cidade risonha, Mrs. Robinson também era. Ela queria que eu a chamasse pelo primeiro nome: Elizabeth, mas eu preferia chamá-la pelo sobrenome do marido. Com ela aprendi a apreciar a música de Bach, a poesia de Keats, e foi por ela que ouvi falar de Mark Twain pela primeira vez. No entanto, nada disso me agradava. Aí, ela dizia, rindo: "Você nunca consegue deixar de ser cerebral?".
Será que era possível evitar algo do que aconteceu? Naquela hora lembrei-me das palavras do padre com quem me encontrei no trem a caminho do Cairo: "Meu filho, no final das contas, todos nós viajamos sozinhos". Sua mão agarrou-se à cruz pendurada no peito, seu rosto se iluminou com um sorriso, e ele me disse: "Você fala inglês com uma fluência assombrosa". O inglês que agora ouço não é igual àquele que aprendi na escola. As vozes que o falam são vivas, têm ritmo diferente.
Minha mente era uma faca afiada, mas essa língua não era a minha. Aprendi a usá-la com eloqüência depois de muita prática. O trem levou-me para a Victoria Station e para o mundo de Jean Morris.
Tudo o que aconteceu antes dela era premonição e tudo o que fiz depois que a matei foi desculpar-me, não por tê-la matado, mas pela mentira que é a minha vida. Estava com meus 25 anos quando a conheci, numa festa, em Chelsea. Havia uma porta e um corredor que levava para a sala.
Ela abriu a porta e entrou lentamente. Sob a luz fraca, parecia uma miragem que brilhou no deserto. Eu estava bêbado, com dois terços do copo vazio, ladeado por duas moças que riam enquanto lhes contava obscenidades.
Ela se aproximou de nós a passos largos, colocou o peso do corpo na perna direita, fazendo a bacia pender para a esquerda. Olhava-me, enquanto se aproximava. Parou diante de mim, fitou-me com frieza e arrogância e com algo mais... Abri a boca para dizer algo, ela virou as costas e foi embora. Perguntei às minhas amigas: "Quem é essa fêmea?".
Londres emergia da guerra e do clima opressivo da era vitoriana. Eu freqüentava os bares de Chelsea, os clubes de Hampstead e as associações de Bloomsbury. Recitava poesia, conversava sobre religião e filosofia, tecia críticas à pintura, dissertava sobre a espiritualidade do Oriente. Era capaz de tudo para levar uma mulher para a cama. Depois partia atrás de outra caça. Não havia em minha alma um pingo de alegria, como dizia Mrs. Robinson.
Meti em minha cama mulheres que faziam parte do Exército de Salvação, das comunidades "quakers", das associações dos fabianos. Quando se reuniam liberais, trabalhadores, conservadores ou comunistas, eu selava meu camelo e me retirava. "Você é feio, nunca vi alguém mais feio do que você", disse-me Jean Morris na segunda vez que a encontrei.
Abri a boca para dizer algo, ela foi embora. Jurei para mim mesmo, bêbado que estava, que um dia a faria pagar por isso. Acordei. Ann Hammond estava do meu lado, na cama. O que atraiu Ann Hammond a mim? O pai era um oficial da Engenharia Real; a mãe, de uma família rica de Liverpool. Foi uma presa fácil. Não tinha completado 20 anos quando a conheci. Estudava línguas orientais em Oxford. Era vivaz, rosto inteligente, alegre, olhos ávidos, curiosos. Quando me viu, confundiu um crepúsculo escuro com uma falsa aurora.
Ao contrário de mim, gostava de climas tropicais, de sol forte e de horizontes púrpuras, e eu era a encarnação de tudo o que ela desejava.
Eu era um sul que desejava o norte e o gelo. Ann Hammond passou a infância numa escola de freiras. Sua tia foi casada com um membro do Parlamento. Transformei-a em prostituta na minha cama. Meu quarto era um cemitério que dava para um jardim; as cortinas cor-de-rosa foram escolhidas com cuidado; o tapete, de um verde morno; a cama espaçosa, almofadas feitas de pena de ganso, pequenas lâmpadas, vermelhas, azuis e violetas, dispostas em pontos estratégicos.
Nas paredes, pendurei grandes espelhos, de modo que quando dormia com uma mulher parecia estar dormindo com um harém inteiro. O quarto exalava aromas fortes de sândalo queimado e incenso; no banheiro, perfumes orientais, loções, frascos, ungüentos e pílulas. Meu quarto era como uma sala de cirurgia. Havia uma lagoa de águas serenas dentro de cada mulher, que eu sabia como agitar.
Um dia acharam-na morta, suicidou-se ligando o gás e, perto do corpo, encontraram um bilhete endereçado a mim. Uma frase curta: "Mr. Said, maldito seja!". Minha mente era uma faca afiada. O trem levou-me para a Victoria Station e para o mundo de Jean Morris.
Na sala da Suprema Corte, em Londres, sentei-me por semanas a ouvir advogados discorrendo sobre mim. A mim, pareciam falar de um estranho com quem não me importava. O promotor público, sir Arthur Higgins, possuía uma mente brilhante, conhecia-o muito bem, pois havia sido seu aluno no curso de direito em Oxford. Naquela mesma corte e naquele mesmo tribunal já o havia visto encurralar réus com suas acusações; raramente alguém escapava de suas mãos. Vira acusados chorar e desmaiar após um interrogatório feito por ele. Mas dessa vez ele enfrentava um cadáver. (...)

A OBRA

Tempo de Migrar para o Norte
Autor: Tayeb Salih
Tradução: Safa Abou-Chahla Jubran
Editora: Planeta
Quanto: ainda não definido



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