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CRÍTICA
Obra reinventa ode dos árabes na arte de narrar pela prosa
MICHEL SLEIMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Circunscrito no conjunto
da literatura híbrida, que não
raro tem por base os temas da
imigração e do autoconhecimento pelo Outro, "Tempo de Migrar
para o Norte" desdobra o relato
em dimensão tríplice: o Sudão do
início do século 20 até a década de
50, recém-saído do colonialismo
britânico, mas que tem de encarar
um colonialismo econômico de
mais profunda raiz; a identidade
do protagonista Mustafa Said dividida entre a Europa e os países
do Nilo, com as mútuas implicações do exotismo, fruto do conhecimento insuficiente das culturas
implicadas; e, por fim, o registro
sinuoso e inventivo do narrador
que, no âmbito específico do
Oriente Médio árabe, reflete o
amadurecimento das técnicas do
romance, gênero em crescente
apreciação entre escritores e leitores.
Em qualquer dos eixos em torno dos quais se desenrola o romance do sudanês Tayeb Salih, é
inevitável que se interponha a
biografia do autor. Ele mesmo, tal
qual o protagonista da história ou
seu narrador, tem construído um
itinerário pessoal que cobre do
Sudão e do Egito, até o Líbano, o
Qatar e a Inglaterra, país em que
reside atualmente.
Nascido em 1929, numa aldeia
fincada a norte do rio Nilo, Salih
estudou na capital Cartum e em
Londres. A partir de 1953, passa a
viver na Inglaterra onde, por 12
anos, chefiou o Departamento de
Árabe da BBC. Na esfera política,
foi conselheiro da Unesco e dirigiu o Ministério da Informação
no Qatar.
Com alguma variação, o narrador e o protagonista Said também
nasceram numa aldeia, igualmente estudaram em Cartum e Londres, ocupando cargos de destaque tanto na vida civil como na
política.
Mas os paralelos devem parar
necessariamente por aqui, pois a
força do romance centra-se muito
mais na movimentação das peças
de xadrez que o narrador tenta armar, entre avanços e recuos, somando relatos ouvidos a episódios presenciados e fatos que ele
sonda em busca de entender o
percurso de um Mustafa Said obscuro, envolto em aventuras sexuais marcadas por paixão, mas
também por frivolidade, suicídios
e assassínio na Londres pós-vitoriana, para, depois, acabar no
aparente retorno até a vida pacata
e rural no interior do Sudão, junto
a certa curva do Nilo, ponto de
partida da história.
O "filho paparicado dos ingleses", o "inglês negro", como a ele
se referem algumas testemunhas,
ou o "Otelo árabe-africano", como Mustafa Said se autodenomina ("Meu rosto é árabe como o
deserto do Rubi-Lkhali e minha
cabeça é africana, cheia de travessuras malvadas"), nutre uma insaciabilidade febril de domínio do
homem do Sul sobre o mundo do
Norte.
Tomado como metáfora da dominação, o revezamento sexual
da personagem com cinco inglesas abre uma fenda perigosa, "um
insondável abismo histórico", em
que as mulheres, presas fáceis,
mariposas cegadas pela luz resplandecente do deus negro, uma a
uma despencam, como que impelidas a atirar-se no precipício. Os
anos de prisão a que então é condenado em Londres iniciam a
derrocada do renomado economista e emissário internacional
do governo britânico, que acaba
na errância pelo mundo e na volta
ao Sudão.
É este o gancho do passado de
Mustafa Said que o hábil narrador
toma para sobrepor a outra trama, protagonizada agora no solo
mesmo do país negro e cujo ápice
será a morte chocante de Hosna,
mulher circuncidada do Sudão
que se recusa a aceitar os desígnios da tradição e repete, a seu
modo, o destino malfadado de
Mustafa Said.
A terceira via de leitura de
"Tempo de Migrar para o Norte",
à diferença do que fazem em francês os contemporâneos Driss
Chraibi ("Le Passé Simple"), marroquino, ou o argelino Mouloud
Feroun ("La Terre et Le Sang"), é
a firmação bem-sucedida do romance em língua árabe como gênero literário que, uma vez aberto
às correntes inovadoras do seu
tempo, reinventa a milenar ode
dos árabes na difícil e sofisticada
arte de narrar pela prosa.
Que este romance de Tayeb Salih revisite o melhor da poesia dos
antigos e contemporâneos não
deve estranhar aos leitores, que
têm em mãos uma obra considerada hoje, por consenso, como a
mais tocante e representativa da
África negra, árabe e muçulmana.
A bem cuidada tradução de Safa
Abou-Chahla Jubran, que recentemente nos dispôs o romance
"Miramar", do egípcio Naguib
Mahfuz, é um passaporte seguro.
Avaliação:
Michel Sleiman é professor de Língua e
Literatura Árabe da USP, autor de "A
Poesia Árabe-andaluza: Ibn Quzman de
Córdova" (Fapesp/Perspectiva, 2000)
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