São Paulo, sábado, 07 de fevereiro de 2004

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CRÍTICA

Obra reinventa ode dos árabes na arte de narrar pela prosa

MICHEL SLEIMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Circunscrito no conjunto da literatura híbrida, que não raro tem por base os temas da imigração e do autoconhecimento pelo Outro, "Tempo de Migrar para o Norte" desdobra o relato em dimensão tríplice: o Sudão do início do século 20 até a década de 50, recém-saído do colonialismo britânico, mas que tem de encarar um colonialismo econômico de mais profunda raiz; a identidade do protagonista Mustafa Said dividida entre a Europa e os países do Nilo, com as mútuas implicações do exotismo, fruto do conhecimento insuficiente das culturas implicadas; e, por fim, o registro sinuoso e inventivo do narrador que, no âmbito específico do Oriente Médio árabe, reflete o amadurecimento das técnicas do romance, gênero em crescente apreciação entre escritores e leitores.
Em qualquer dos eixos em torno dos quais se desenrola o romance do sudanês Tayeb Salih, é inevitável que se interponha a biografia do autor. Ele mesmo, tal qual o protagonista da história ou seu narrador, tem construído um itinerário pessoal que cobre do Sudão e do Egito, até o Líbano, o Qatar e a Inglaterra, país em que reside atualmente.
Nascido em 1929, numa aldeia fincada a norte do rio Nilo, Salih estudou na capital Cartum e em Londres. A partir de 1953, passa a viver na Inglaterra onde, por 12 anos, chefiou o Departamento de Árabe da BBC. Na esfera política, foi conselheiro da Unesco e dirigiu o Ministério da Informação no Qatar.
Com alguma variação, o narrador e o protagonista Said também nasceram numa aldeia, igualmente estudaram em Cartum e Londres, ocupando cargos de destaque tanto na vida civil como na política.
Mas os paralelos devem parar necessariamente por aqui, pois a força do romance centra-se muito mais na movimentação das peças de xadrez que o narrador tenta armar, entre avanços e recuos, somando relatos ouvidos a episódios presenciados e fatos que ele sonda em busca de entender o percurso de um Mustafa Said obscuro, envolto em aventuras sexuais marcadas por paixão, mas também por frivolidade, suicídios e assassínio na Londres pós-vitoriana, para, depois, acabar no aparente retorno até a vida pacata e rural no interior do Sudão, junto a certa curva do Nilo, ponto de partida da história.
O "filho paparicado dos ingleses", o "inglês negro", como a ele se referem algumas testemunhas, ou o "Otelo árabe-africano", como Mustafa Said se autodenomina ("Meu rosto é árabe como o deserto do Rubi-Lkhali e minha cabeça é africana, cheia de travessuras malvadas"), nutre uma insaciabilidade febril de domínio do homem do Sul sobre o mundo do Norte.
Tomado como metáfora da dominação, o revezamento sexual da personagem com cinco inglesas abre uma fenda perigosa, "um insondável abismo histórico", em que as mulheres, presas fáceis, mariposas cegadas pela luz resplandecente do deus negro, uma a uma despencam, como que impelidas a atirar-se no precipício. Os anos de prisão a que então é condenado em Londres iniciam a derrocada do renomado economista e emissário internacional do governo britânico, que acaba na errância pelo mundo e na volta ao Sudão.
É este o gancho do passado de Mustafa Said que o hábil narrador toma para sobrepor a outra trama, protagonizada agora no solo mesmo do país negro e cujo ápice será a morte chocante de Hosna, mulher circuncidada do Sudão que se recusa a aceitar os desígnios da tradição e repete, a seu modo, o destino malfadado de Mustafa Said.
A terceira via de leitura de "Tempo de Migrar para o Norte", à diferença do que fazem em francês os contemporâneos Driss Chraibi ("Le Passé Simple"), marroquino, ou o argelino Mouloud Feroun ("La Terre et Le Sang"), é a firmação bem-sucedida do romance em língua árabe como gênero literário que, uma vez aberto às correntes inovadoras do seu tempo, reinventa a milenar ode dos árabes na difícil e sofisticada arte de narrar pela prosa.
Que este romance de Tayeb Salih revisite o melhor da poesia dos antigos e contemporâneos não deve estranhar aos leitores, que têm em mãos uma obra considerada hoje, por consenso, como a mais tocante e representativa da África negra, árabe e muçulmana. A bem cuidada tradução de Safa Abou-Chahla Jubran, que recentemente nos dispôs o romance "Miramar", do egípcio Naguib Mahfuz, é um passaporte seguro.


Avaliação:     

Michel Sleiman é professor de Língua e Literatura Árabe da USP, autor de "A Poesia Árabe-andaluza: Ibn Quzman de Córdova" (Fapesp/Perspectiva, 2000)


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