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LITERATURA
"A PANE. O TÚNEL. O CÃO"
Real e representação se confundem na obra do escritor suíço de forma cômica e sinistra
Dürrenmatt encara a Justiça como cena teatral
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
É comum aos escritores mais
encantados pelo teatro acabar expressando em algum momento da sua carreira a perplexidade diante dos paradoxos entre a
representação e a realidade. Há
uma longa tradição dramática e
literária, de Shakespeare a Schnitzler, em que o real e a representação se confundem de uma forma
lúdica, cômica ou sinistra (peças
dentro de peças, dentro de contos
etc.). Decorre daí uma questão
moral que intrigou o suíço Friedrich Dürrenmatt (1921-90) ao
longo de toda a sua obra, muito
marcada pelo teatro (no Brasil,
seu texto mais conhecido e encenado é "A Visita da Velha Senhora") e pela idéia da Justiça como
uma forma de representação.
No romance "Justiça", por
exemplo, depois de preso e condenado num processo farto de
provas e testemunhas, um assassino contrata, de dentro da prisão,
um advogado para encontrar o
"verdadeiro culpado". Em "O Juiz
e seu Carrasco", um delegado em
final de carreira consegue incriminar um homem por um crime
que ele não cometeu, para puni-lo
por um crime que ele cometeu no
passado e pelo qual não foi condenado.
"A Pane", principal conto desta
pequena coletânea agora publicada pela Códex (que também reúne dois outros pesadelos a meu
ver mais datados em sua simbologia onírica e existencialista: "O
Túnel" e "O Cão"), faz uma alegoria da Justiça como cena teatral e
tira daí conclusões perturbadoras. É uma obra-prima.
Em seguida à sua publicação,
em 1955, o conto foi adaptado pelo autor como peça radiofônica
-e depois para a televisão, teatro
e cinema. A situação ali narrada
ganha ambigüidade ao ser encenada. Passa a ser a encenação da
encenação da encenação.
Quando o carro de um caixeiro-viajante quebra no meio da estrada, ele é obrigado a procurar auxílio num pequeno vilarejo onde
acaba decidindo pernoitar. Como
a estalagem está lotada, recorre a
um velho juiz aposentado que
aluga quartos em sua casa. Durante o jantar, um verdadeiro
banquete para o qual também foram convidados três outros velhos amigos do anfitrião, ao caixeiro-viajante é proposto um jogo: participar como réu da encenação de um julgamento em que
os quatro velhos aposentados interpretarão as suas antigas funções de juiz, promotor, advogado
de defesa e carrasco.
O conto pode ser lido como
uma reinterpretação de "O Processo", de Kafka, transformado
em jogo com a aquiescência da vítima. Não é à toa que o nome do
caixeiro-viajante seja Traps (armadilhas, em inglês) nem que a
narrativa se desenvolva num clima de suspense e terror. Mas nada disso prevê o desenlace surpreendente, que não só amplifica
as conclusões desse conto moral,
mas de certa forma frusta todas as
expectativas prévias com um arremate ainda mais inesperado.
Real e representação se confundem, mas não da maneira que o
conto anunciava.
Na introdução, Dürrenmatt faz
uma espécie de desabafo contra o
estado da literatura da sua época,
que acreditava não haver mais nada para narrar e se comprazia
com a expressão romântica do
"eu" dos autores e de suas experiências pessoais e íntimas. Há
ecos disso no presente. O escritor
suíço recusava essa tendência e
encarava a "trama" como um escultor diante do seu material. A
pane do carro do caixeiro-viajante é, para ele, o sinal de um novo
mundo de potencialidades narrativas em que o destino não está
mais na mão de Deus, mas foi
transferido para o acaso pela multiplicação industrial de possibilidades de destruição (atômicas
etc.) por erros mínimos ou distrações do homem.
Se por um lado esse desabafo
diz respeito a um tempo específico, em que Dürrenmatt escrevia,
por outro mostra que a realidade
está sempre abrindo novas possibilidades de representação, as histórias são sempre possíveis e o escritor nunca deve se subjugar ao
que lhe apresentam como tendência intransponível.
A PANE. O TÚNEL. O CÃO
Autor: Friedrich Dürrenmatt
Editora: Códex
Quanto: R$ 25 (112 págs).
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