São Paulo, sábado, 07 de fevereiro de 2004

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LITERATURA

"A PANE. O TÚNEL. O CÃO"

Real e representação se confundem na obra do escritor suíço de forma cômica e sinistra

Dürrenmatt encara a Justiça como cena teatral

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

É comum aos escritores mais encantados pelo teatro acabar expressando em algum momento da sua carreira a perplexidade diante dos paradoxos entre a representação e a realidade. Há uma longa tradição dramática e literária, de Shakespeare a Schnitzler, em que o real e a representação se confundem de uma forma lúdica, cômica ou sinistra (peças dentro de peças, dentro de contos etc.). Decorre daí uma questão moral que intrigou o suíço Friedrich Dürrenmatt (1921-90) ao longo de toda a sua obra, muito marcada pelo teatro (no Brasil, seu texto mais conhecido e encenado é "A Visita da Velha Senhora") e pela idéia da Justiça como uma forma de representação.
No romance "Justiça", por exemplo, depois de preso e condenado num processo farto de provas e testemunhas, um assassino contrata, de dentro da prisão, um advogado para encontrar o "verdadeiro culpado". Em "O Juiz e seu Carrasco", um delegado em final de carreira consegue incriminar um homem por um crime que ele não cometeu, para puni-lo por um crime que ele cometeu no passado e pelo qual não foi condenado.
"A Pane", principal conto desta pequena coletânea agora publicada pela Códex (que também reúne dois outros pesadelos a meu ver mais datados em sua simbologia onírica e existencialista: "O Túnel" e "O Cão"), faz uma alegoria da Justiça como cena teatral e tira daí conclusões perturbadoras. É uma obra-prima.
Em seguida à sua publicação, em 1955, o conto foi adaptado pelo autor como peça radiofônica -e depois para a televisão, teatro e cinema. A situação ali narrada ganha ambigüidade ao ser encenada. Passa a ser a encenação da encenação da encenação.
Quando o carro de um caixeiro-viajante quebra no meio da estrada, ele é obrigado a procurar auxílio num pequeno vilarejo onde acaba decidindo pernoitar. Como a estalagem está lotada, recorre a um velho juiz aposentado que aluga quartos em sua casa. Durante o jantar, um verdadeiro banquete para o qual também foram convidados três outros velhos amigos do anfitrião, ao caixeiro-viajante é proposto um jogo: participar como réu da encenação de um julgamento em que os quatro velhos aposentados interpretarão as suas antigas funções de juiz, promotor, advogado de defesa e carrasco.
O conto pode ser lido como uma reinterpretação de "O Processo", de Kafka, transformado em jogo com a aquiescência da vítima. Não é à toa que o nome do caixeiro-viajante seja Traps (armadilhas, em inglês) nem que a narrativa se desenvolva num clima de suspense e terror. Mas nada disso prevê o desenlace surpreendente, que não só amplifica as conclusões desse conto moral, mas de certa forma frusta todas as expectativas prévias com um arremate ainda mais inesperado. Real e representação se confundem, mas não da maneira que o conto anunciava.
Na introdução, Dürrenmatt faz uma espécie de desabafo contra o estado da literatura da sua época, que acreditava não haver mais nada para narrar e se comprazia com a expressão romântica do "eu" dos autores e de suas experiências pessoais e íntimas. Há ecos disso no presente. O escritor suíço recusava essa tendência e encarava a "trama" como um escultor diante do seu material. A pane do carro do caixeiro-viajante é, para ele, o sinal de um novo mundo de potencialidades narrativas em que o destino não está mais na mão de Deus, mas foi transferido para o acaso pela multiplicação industrial de possibilidades de destruição (atômicas etc.) por erros mínimos ou distrações do homem.
Se por um lado esse desabafo diz respeito a um tempo específico, em que Dürrenmatt escrevia, por outro mostra que a realidade está sempre abrindo novas possibilidades de representação, as histórias são sempre possíveis e o escritor nunca deve se subjugar ao que lhe apresentam como tendência intransponível.


A PANE. O TÚNEL. O CÃO
    
Autor: Friedrich Dürrenmatt
Editora: Códex
Quanto: R$ 25 (112 págs).



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