São Paulo, sábado, 7 de março de 1998

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Naya: singular ou plural?

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

Inimigo público número um, em duas semanas Sérgio Naya conseguiu um milagre: saiu das sombras para alcançar rara unanimidade nacional. Nem Collor de Mello chegou a tanto. Numa sociedade inclinada às dissensões, que abomina aproximações, esta combinação de "serial killer" e político, gângster e empresário, filantropo e corrupto, obteve inédito consenso de repúdio e abominação.
A catástrofe da Barra que matou oito pessoas e desabrigou até o momento quase duas centenas de famílias está funcionando como catarse purgadora, vômito purificador num ambiente onde ninguém se considera corrupto, mas quase todos transigem com o corruptor.
Sérgio Naya converteu-se instantaneamente num arquétipo nacional, embora seja um fenômeno brasiliense: resultado da distância ainda não vencida entre a capital e o resto do país, do vácuo entre os corredores do poder e a rua. Produto da cultura dos abraços e de uma insólita conciliação de interesses que transcende as irreconciliáveis oposições ideológicas.
Cria de Golbery do Couto e Silva, amigo do "professor" Heitor de Aquino, deslizou para as vizinhanças da oposição, quando percebeu as rachaduras do regime militar. Já era expert em desabamentos: acercou-se de Ulysses Guimarães e de figuras menores do campo democrático.
Seu primeiro trambique no campo empresarial-estrutural deu-se no governo Sarney, quando trocou com o Ministério da Reforma Agrária um edifício construído pela Sersan por 53 lotes nas zonas mais nobres dos lagos. Em seguida, o edifício foi embargado por apresentar falhas estruturais. Sarney deixou rolar, quem estrilou foi o Ministério Público.
Logo depois, foi beneficiado por concessões de rádios e TV comunitárias, não tendo a menor tradição e experiência no setor. Diversos jornalistas também foram aquinhoados.
Engalfinhou-se numa boate com um jornalista brasiliense, mas o incidente não chegou à mídia nacional. Acusado de envolvimento no narcotráfico, tentou novamente um pugilato em plenário. O caso foi noticiado, mas não acompanhado. Seu luxuoso triplex na praia do Leblon, Rio, com toda a sofisticada infra-estrutura, era oferecido aos amigos para recepções de alto coturno, dentro da maior seriedade, naturalmente. Numa delas, foi homenageado pela ala intelectualizada do PPB o ex-Secretário de Defesa dos EUA Caspar Weinberger. Presentes alguns jornalistas.
Sua ultima façanha em matéria de tráfico de influências ocorreu em outubro passado, quando obteve do Banco do Brasil autorização para a rolagem da dívida da Sersan no valor de R$ 15 milhões. O privilégio mereceu uma notícia e foi esquecido.
Naya está no ramo da construção há duas décadas e no negócio parlamentar há 12 anos. Na eleição de 1994, os seus votos foram os mais caros de Minas (gastou cerca de R$ 500 mil para um retorno de cerca de 50 mil votos, quase R$ 10 por voto, muito mais do que o seu parceiro Newton Cardoso, que gastou R$ 3 por voto). Dados públicos, disponíveis desde meados de 1995.
Não é um clandestino ou arrivista, é figura conhecida, razão pela qual a imprensa logo na primeira semana (que incluiu o remanso momesco) conseguiu desencavar razoável acervo biográfico. Tem amigos do peito em pontos nevrálgicos, inclusive na mídia. Entrosado na máquina suprapartidária de favores e atenções, fez uma opção estratégica imbatível.
Ao contrário de Maluf, presidente do seu partido até a última quarta-feira, Naya preferiu trabalhar no lusco-fusco dos bastidores. Sabia que a mídia só tem apetite para grandes escândalos, de preferência no primeiro escalão, por isso optou por se manter como peixinho. Eterno sobrevivente, poderia sobreviver e prosperar por outras duas décadas, não fosse a pesada mão do destino levando oito vidas.
Esse é o retrato do pilantra boa-praça, protótipo do emergente, hábil manipulador do sistema de afetos e gratidões, o safado simpático que pinta e borda porque sabe pinçar seus pares no meio da multidão.
Sérgio Naya é singular ou plural? Aberração única ou clone produzido na linha de montagem da cultura da malandragem?
José Bonifácio de Andrade e Silva, o Patriarca da Independência, embora tenha vivido há dois séculos, tem uma resposta e uma sentença:
"...(os brasileiros) suportam melhor o roubo que o vilipêndio...; ignorantes por falta de instrução, mas cheios de talento por natureza; de imaginação brilhante e, por isso, amigos de novidades que prometem perfeição e enobrecimentos; generosos, mas com bazófia..., mostram altivez nas baixezas, amor-próprio nas bagatelas e obstinação nas puerilidades...quando me ponho a refletir no estado e índole atual dos meus naturais e considero atentamente a sua educação e polícia, não me admiro que sejam maus e corrompidos; admiro-me, de certo, que o não sejam mais ainda -e pelos meios ordinários nenhuma esperança me fica da sua regeneração..."
Está num fascinante livrinho, coletânea de textos inéditos do nosso primeiro estadista, "Projetos para o Brasil", diligentemente organizados e comentados por Míriam Dollnikoff (Cia. das Letras, 1998). O título do capítulo, "O Caráter Geral dos Brasileiros", é do próprio autor (pp.183-193, como esclarece um oportuno rodapé).
Significa que José Bonifácio, pouco depois da Independência, já estava familiarizado com as idéias de J.G. Herder (1744-1803), crítico, poeta e historiador alemão, responsável pelo conceito de "caráter nacional". Ao ser formulado (nas "Idéias para uma História da Humanidade",1791), impulsionou o iluminismo francês e o romantismo alemão. Um século depois, serviu de pasto para os mais virulentos preconceitos racistas (caso do Conde Gobineau, que andou por aqui no Segundo Império) e fundamentou os diversos totalitarismos ainda não extirpados.
A preocupação com o "caráter nacional" brasileiro tem atraído nossas melhores inteligências, de Alberto Torres a Oliveira Viana, de Euclides da Cunha a Paulo Prado e Manuel Bonfim, de Gilberto Freyre a Sérgio Buarque de Hollanda e está brilhantemente resumida num livro fundamental, "O Caráter Nacional Brasileiro" (ed. Pioneira, 1976), que merecia reedição.
A conclusão de Moreira Leite é de que não existe um "caráter nacional", mas uma cultura, um condicionamento ou, como quer uma corrente de historiadores franceses, uma mentalidade. José Bonifácio menciona nosso engenho e nosso desamor pelo trabalho assíduo, "empreendemos muito e acabamos pouco". "...como podem ser virtuosos, se não são, por assim dizer, mecanicamente educados para a virtude, se desde a mais tenra mocidade todos os exemplos que os rodeiam os conduzem ao crime e ao mais envilecido egoísmo?..."
Sérgio Naya é um dos nossos novos arquétipos, mas José Bonifácio também é. Este é um dado que não deve ser esquecido no "day after" da atual angústia justiceira. O PPB mostrou uma condescendência genética para a pilantragem, mas o PMDB, o PT, o PSDB, o PSB e o PFL, em episódios recentes e estrepitosos, mostraram que não são imunes às prevaricações legais e morais. Se Naya for cassado, os demais processos, ora engavetados no Legislativo, devem ser reabertos com igual presteza. E levados às últimas consequências.
Se a educação, como queria Bonifácio, é o único antídoto eficaz contra a leniência, mas leva tempo, existem dois outros que podem ser imediatamente acionados: o aparelho judicial e a estrutura eleitoral.
Eis aí um mutirão apolítico e cidadão, verdadeiro movimento de união nacional para lembrar os caídos na Barra. Naya não é singular, mas pode ser exemplar.



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