São Paulo, sábado, 07 de abril de 2001

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ARTIGO

Gênero policial foge da inocência

CARLOS FUENTES
ESPECIAL PARA A FOLHA

É dado como certo que a moderna narrativa policial começou com a publicação, em 1841, de "Os Crimes da Rua Morgue", de Edgar Allan Poe. O autor norte-americano estabeleceu uma das regras do gênero: o detetive emprega a mais estrita lógica para elucidar o mistério. Apesar disso, o exemplo mais perfeito da técnica de Poe é "A Carta Roubada", obra-prima sobre a atenção visual: o objeto roubado é invisível porque está à vista de todos.
Os descendentes de Poe atingem seu auge com o Sherlock Holmes, de Conan Doyle, figura mítica do gênero, cujo uso da lógica detetivesca marca "ad nauseam" tudo o que o segue: Poirot, de Agatha Christie, o lorde Peter Wimsey, de Dorothy Sayers, etc. Em sua versão britânica, a mais clássica, o ambiente costuma ser refinado. O desenlace também é clássico: o detetive reúne os suspeitos e, com lógica implacável, demonstra quem é o assassino.
Três autores rompem violentamente com o molde que descrevi. Eles se inscrevem na perda da inocência americana: Dashiell Hammett, Raymond Chandler e James Cain. A inocência está inteiramente ausente de seu mundo, dominado pela corrupção, avareza, vício, ambição, poder. São temas que têm antecedentes nos romances de realismo bruto do final de século anterior: Theodore Dreisser, Frank Norris, Upton Sinclair. Do mesmo modo, a técnica despojada, oral, desses romances que acabaram por ser conhecidos como "roman noir" tem um antecedente estilístico e temático claro nessa jóia do conto que são "os assassinos" de Ernest Hemingway.
Enquanto isso, a tradição da conquista do espaço encontra seu campo de batalha circunscrito à briga pelo território urbano, disputado por gângsteres. E o "roman noir" se oferece como ato literário tão próximo da verdade que carece de antecedentes.
Semelhante pretensão de "virgindade" não deixa de ser paradoxal em romances tão manchados de sangue, corrupção e traição. Mas seria outra traição -tão terrível quanto as praticadas pelos protagonistas de "O Falcão Maltês", "O Sonho Eterno" ou "O Destino Bate à Sua Porta"- ocultar a tradição que alimenta a nova criação dessas obras.
Já mencionei o antecedente que o "roman noir" pretende matar. Mas, se o romance europeu do século 19 tem espaços urbanos muito antigos e restritos, assim como um mundo agrário e conservador, o "roman noir" representa não a decantação vertical de uma tradição, mas a viagem final de um horizonte muito recente. Não é por acaso que Cain, Chandler e Hammet tenham como cenário preferido o Estado americano.
Implicitamente, a leitura desses autores nos propõe uma pergunta: o que foi feito do grande sonho americano de progresso, liberdade, felicidade e expansão ilimitada? O "roman noir" responde: o sonho virou pesadelo. E o espaço do pesadelo já não é a planície de Fenimore Cooper, o rio de Mark Twain. O espaço é a cidade e vai desde a cobertura até a rede de esgotos. E, ao final, não há espaço para o espaço. O espaço todo é ocupado pelo poder.
O progresso tão desejado se resolve na luta pelo poder, e esta se dá em condições de violência extrema. "Red Harvest" é, por isso, o romance emblemático do gênero noir. O lema é "vencer ou morrer". A violência é o modo de ser permanente do poder.
É então que aparece o herói: o detetive particular, que opera fora das cumplicidades do poder, a mando de um cliente que não deixa de ser suspeito. Herói da cidade e da noite, o cinema nos deu a imagem urbana do habitat do detetive particular. Ruas desertas e calçadas brilhando de chuva. Bares e cassinos. Prostíbulos e mansões de milionários excêntricos. Tal é o campo de Montiel desse novo cavaleiro andante.
O detetive particular é um homem sozinho contra o poder. Rodeado de Dulcinéias sem honra, o Quixote urbano tem de prosseguir sozinho em seu caminho: ganha pouco, dorme mal e é espancado sem dó. Mas, para ele, é essencial manter a honra pessoal em meio à corrupção.
Um herói sem amor. Um herói sem biografia, como se o passado comprometesse não apenas sua pureza, mas também esse caráter imediato da ação que é próprio do "roman noir". Herói solitário, autodidata, infinitamente adaptável às circunstâncias, dono do solilóquio. O homem sozinho contra um poder mascarado que o detetive particular se propõe a desmascarar, ciente de combater uma hidra de mil cabeças.
Os protagonistas do "roman noir" americano são filhos da era do jazz de Scott Fitzgerald, herdeiros da Lei Seca e da catástrofe financeira de 1929.
Mas o "roman noir" não oferece mensagem. Cain, Chandler ou Hammett se limitam a mostrar. Atuam num espaço distribuído entre o poder, a violência e a loucura. Mas se manifestam como escritores, e sua forma escolhida é o romance. Ao final das contas, é esse o paradigma pelo qual devemos julgá-los. "Meus romances poderiam ser melhores", escreveu Chandler em tom irônico. "Mas, se o fossem, não teriam sido publicados." E acrescenta: "Não existem clássicos de crime ou detetives. Um clássico esgota as possibilidades da forma e não pode ser superado. Nenhum romance policial o conseguiu. Por isso continuamos a atacar a cidadela".
E os novos atacantes da cidadela são muitos, persistentes e inovadores. Mas, ao final, "todos nós saímos da "Máscara Negra" de Hammett", escreveu Philip MacDonald, evocando a frase de Dostoiévski sobre Gogol.
Que Deus salve Dashiell Hammett (1894-1961), Raymond Chandler (1888-1959) e James M. Cain (1892-1977) da respeitabilidade! Pode ser que estejam se virando em seus túmulos ao saber que são clássicos. São algo melhor do que isso. São o que quiseram ser: os grandes e humildes poetas da cidade e da noite.


Tradução Clara Allain


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