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ARTIGO
Gênero policial foge da inocência
CARLOS FUENTES
ESPECIAL PARA A FOLHA
É dado como certo que a moderna narrativa policial começou com a publicação, em
1841, de "Os Crimes da Rua Morgue", de Edgar Allan Poe. O autor
norte-americano estabeleceu
uma das regras do gênero: o detetive emprega a mais estrita lógica
para elucidar o mistério. Apesar
disso, o exemplo mais perfeito da
técnica de Poe é "A Carta Roubada", obra-prima sobre a atenção
visual: o objeto roubado é invisível porque está à vista de todos.
Os descendentes de Poe atingem seu auge com o Sherlock
Holmes, de Conan Doyle, figura
mítica do gênero, cujo uso da lógica detetivesca marca "ad nauseam" tudo o que o segue: Poirot,
de Agatha Christie, o lorde Peter
Wimsey, de Dorothy Sayers, etc.
Em sua versão britânica, a mais
clássica, o ambiente costuma ser
refinado. O desenlace também é
clássico: o detetive reúne os suspeitos e, com lógica implacável,
demonstra quem é o assassino.
Três autores rompem violentamente com o molde que descrevi.
Eles se inscrevem na perda da inocência americana: Dashiell Hammett, Raymond Chandler e James
Cain. A inocência está inteiramente ausente de seu mundo, dominado pela corrupção, avareza,
vício, ambição, poder. São temas
que têm antecedentes nos romances de realismo bruto do final de
século anterior: Theodore Dreisser, Frank Norris, Upton Sinclair.
Do mesmo modo, a técnica despojada, oral, desses romances que
acabaram por ser conhecidos como "roman noir" tem um antecedente estilístico e temático claro
nessa jóia do conto que são "os assassinos" de Ernest Hemingway.
Enquanto isso, a tradição da
conquista do espaço encontra seu
campo de batalha circunscrito à
briga pelo território urbano, disputado por gângsteres. E o "roman noir" se oferece como ato literário tão próximo da verdade
que carece de antecedentes.
Semelhante pretensão de "virgindade" não deixa de ser paradoxal em romances tão manchados
de sangue, corrupção e traição.
Mas seria outra traição -tão terrível quanto as praticadas pelos
protagonistas de "O Falcão Maltês", "O Sonho Eterno" ou "O
Destino Bate à Sua Porta"- ocultar a tradição que alimenta a nova
criação dessas obras.
Já mencionei o antecedente que
o "roman noir" pretende matar.
Mas, se o romance europeu do século 19 tem espaços urbanos muito antigos e restritos, assim como
um mundo agrário e conservador, o "roman noir" representa
não a decantação vertical de uma
tradição, mas a viagem final de
um horizonte muito recente. Não
é por acaso que Cain, Chandler e
Hammet tenham como cenário
preferido o Estado americano.
Implicitamente, a leitura desses
autores nos propõe uma pergunta: o que foi feito do grande sonho
americano de progresso, liberdade, felicidade e expansão ilimitada? O "roman noir" responde: o
sonho virou pesadelo. E o espaço
do pesadelo já não é a planície de
Fenimore Cooper, o rio de Mark
Twain. O espaço é a cidade e vai
desde a cobertura até a rede de esgotos. E, ao final, não há espaço
para o espaço. O espaço todo é
ocupado pelo poder.
O progresso tão desejado se resolve na luta pelo poder, e esta se
dá em condições de violência extrema. "Red Harvest" é, por isso,
o romance emblemático do gênero noir. O lema é "vencer ou morrer". A violência é o modo de ser
permanente do poder.
É então que aparece o herói: o
detetive particular, que opera fora
das cumplicidades do poder, a
mando de um cliente que não deixa de ser suspeito. Herói da cidade e da noite, o cinema nos deu a
imagem urbana do habitat do detetive particular. Ruas desertas e
calçadas brilhando de chuva. Bares e cassinos. Prostíbulos e mansões de milionários excêntricos.
Tal é o campo de Montiel desse
novo cavaleiro andante.
O detetive particular é um homem sozinho contra o poder. Rodeado de Dulcinéias sem honra, o
Quixote urbano tem de prosseguir sozinho em seu caminho: ganha pouco, dorme mal e é espancado sem dó. Mas, para ele, é essencial manter a honra pessoal
em meio à corrupção.
Um herói sem amor. Um herói
sem biografia, como se o passado
comprometesse não apenas sua
pureza, mas também esse caráter
imediato da ação que é próprio do
"roman noir". Herói solitário, autodidata, infinitamente adaptável
às circunstâncias, dono do solilóquio. O homem sozinho contra
um poder mascarado que o detetive particular se propõe a desmascarar, ciente de combater
uma hidra de mil cabeças.
Os protagonistas do "roman
noir" americano são filhos da era
do jazz de Scott Fitzgerald, herdeiros da Lei Seca e da catástrofe
financeira de 1929.
Mas o "roman noir" não oferece
mensagem. Cain, Chandler ou
Hammett se limitam a mostrar.
Atuam num espaço distribuído
entre o poder, a violência e a loucura. Mas se manifestam como
escritores, e sua forma escolhida é
o romance. Ao final das contas, é
esse o paradigma pelo qual devemos julgá-los. "Meus romances
poderiam ser melhores", escreveu
Chandler em tom irônico. "Mas,
se o fossem, não teriam sido publicados." E acrescenta: "Não
existem clássicos de crime ou detetives. Um clássico esgota as possibilidades da forma e não pode
ser superado. Nenhum romance
policial o conseguiu. Por isso continuamos a atacar a cidadela".
E os novos atacantes da cidadela
são muitos, persistentes e inovadores. Mas, ao final, "todos nós
saímos da "Máscara Negra" de
Hammett", escreveu Philip MacDonald, evocando a frase de Dostoiévski sobre Gogol.
Que Deus salve Dashiell Hammett (1894-1961), Raymond
Chandler (1888-1959) e James M.
Cain (1892-1977) da respeitabilidade! Pode ser que estejam se virando em seus túmulos ao saber
que são clássicos. São algo melhor
do que isso. São o que quiseram
ser: os grandes e humildes poetas
da cidade e da noite.
Tradução Clara Allain
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