São Paulo, sexta-feira, 07 de maio de 2004

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CRÍTICA

"Pântano" captura os seres humanos no momento da queda

CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR DA ILUSTRADA

Depois de tanto atraso e da crença de que filmes como "O Filho da Noiva" e "Nove Rainhas" representavam a nova geração, a estréia de "Pântano" chega para desfazer equívocos.
Uma palavra resume a experiência diante do longa de estréia de Lucrecia Martel: choque. Nele, condensa-se o espírito formal e simbólico da geração que levou o cinema argentino a um patamar equiparado apenas ao do -também desconhecido aqui- cinema feito hoje da Coréia do Sul.
Do ponto de vista formal, a economia dos meios dos filmes argentinos da nova geração, em vez de refletir pobreza, tira proveito das limitações.
Em "Pântano", quarto, banheiro, cozinha, piscina, floresta, além do próprio pântano e outros espaços banais são filmados tais como são: com uma cenografia quase no osso, que conduz a um sufocamento no limite da claustrofobia, mas que também transcende a vida material. Não são espaços construídos para uma ficção elaborada para obter efeitos apaziguadores ou espetaculares. São espaços-quaisquer, em que o concreto das situações encontra as condições justas para que se mostrem o nada e a ausência, a crise e a corrupção.
Já do ponto de vista narrativo, a proposta de Martel evita a fórmula, não forja nexos de causalidade na ficção, aparentemente só registra sem privilegiar momentos fortes. O resultado é uma sinfonia composta de cacos. O que lhe interessa não é a ação, mas os acontecimentos. Ao contrário da TV, que transmite ao vivo um milagre da aparição da virgem -e nada mostra-, a câmera de Martel captura os corpos abandonados numa cama desarrumada.
"Pântano" insere Martel naquela categoria de artistas que alcançam o espiritual, o fantástico ou o simbólico através da intensificação do físico, do concreto. Faz pensar em "A Palavra", do dinamarquês Carl Dreyer, e faz pensar ainda mais no espanhol Luis Buñuel, sobretudo o pesadelo claustrofóbico de "O Anjo Exterminador". É no naturalismo de Buñuel que Martel encontra sua principal fonte inspiradora.
"Pântano" obviamente pertence a um cinema de exceção, é um filme feito para um público que aceita ser instigado, provocado. Não pertence à linhagem do cinema comercial porque usa o cinema como uma forma de expressão que nos restitui a crença não num mundo de sonhos, mas na tragédia como a solução que a vida encontra para seguir em frente.


O Pântano
La Ciénaga
    
Direção: Lucrecia Martel
Produção: Argentina/França, 2001
Com: Mercedes Morán, Graciela Borges, Martín Adjemián
Quando: a partir de hoje no Cinesesc



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