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CARLOS HEITOR CONY
O enviado especial
Saltou do avião com entusiasmo. Aquele país podia estourar e, quanto mais estourasse,
melhor, ele mandaria notícias para seu distante jornal. Fez um giro
pela cidade, soube das novidades,
telefonou para alguns amigos e
tomou pulso da crise. Coisa banal
-viu logo-, simples quartelada
de generais contra generais. Mandou sua matéria pelo cabo submarino -não havia e-mail naquele tempo- e foi jantar no
Kings.
A penumbra do restaurante
cinco estrelas deu-lhe saudades
de casa. Bom -pensou-, a situação é simples. Volto daqui a
dois dias, esses generais não são
de nada, vão brigar por muito
tempo e a crise perderá interesse.
Mas o interesse cresce subitamente: um grupo remanescente
dos "Lecuona Cuban Boys" apareceu no palco, repertório compacto dos anos 60, "Cubanacan",
"Ojos Verdes", uma guarânia paraguaia que estourava no mercado mundial ("Recuerdos de Ypacaraí") e, sobretudo, uma rumbeira de ancas monumentais que
inicia um complicado número de
strip-tease.
Não foi difícil a aproximação.
Chamava-se Maria qualquer-coisa, acho que Maria Rosária ou
Maria Dolores, nascera no Chile,
criara-se em Cuba. Tinha os olhos
verdes, como os da rumba homônima, e morna voz.
- Usted es del Brasil?
Era. E ela gostara de um brasileiro em sua primeira mocidade,
um cearense que lhe dera desfalques e uma dor de corno que custara a passar, se é que tinha passado. Perguntou se o Ceará era
longe do Rio.
- Mais ou menos. Mas todo
brasileiro tem um pouco de cearense.
Ela não pesquisa a veracidade
da informação e vão tomar café
no bar que ameaçava fechar. A
lua é amarela sobre o mar del
Plata e de repente estão de mãos
dadas, passeando pela Costanera.
Nero é o nome do gerente do hotel, sem fazer perguntas, acrescenta um respeitoso "y señora" na ficha do hóspede para uma noite
só.
Nero recomenda um vinho para
a abertura dos trabalhos, eles recusam o vinho, os trabalhos já estavam suficientemente adiantados, dispensavam os preparativos.
A crise política caminha para o
nada. Mais dois telefonemas, o
encontro casual com um ex-ministro na sessão do "My Fair
Lady", que está em cartaz num cine-teatro da Corrientes, e as notícias vieram fresquinhas e esclarecedoras. Os militares do contra
derrubaram os militares do a favor, o presidente estava preso em
Olivos, reinava ordem em toda a
nação.
- Volto amanhã mesmo. Isso é
uma palhaçada!
Mas, à noite, a rumbeira canta
com voz morna e revira os olhos
verdes, "aqueles olhos verdes, serenos como um lago em cujas
quietas águas um dia me mirei".
Ele sonha com mares verdes do
Caribe, uma ilha sem barbudos
nem paredón, mas com praias
tropicais, cheiro de conchas, com
palmeira, mulher e luar.
- Usted se va mañana?
Sim, a profissão é séria, está ali
por conta do jornal, leitores esperam pelas suas notícias, no Brasil
teme-se de uma hora para outra
um golpe igual. Mas os olhos verdes ficam mais verdes e pedem
que ele fique.
Vai ao cabo submarino, senta
na máquina e carrega nas tintas.
Insinua que haverá greves de metalúrgicos, descontentes com os
salários, tumulto na Boca, agressões a estudantes em diversas universidades, inventa um levante de
tropa em Bahía Blanca e redige
por conta própria um patético
pronunciamento do cardeal-arcebispo pedindo cordura e não-derramamento de sangue.
Suas matérias, publicadas na
primeira página do primeiro caderno, provocam confusão, dá
bode nas agências internacionais.
A FP e a UPI, para não serem furadas, confirmam vagamente as
notícias, na base do "há rumores
de que as tropas de Bahía Blanca
...".
Há rumor à noite, quando os
dois se estreitam no hotel e surge
uma lua menstruada, suja de
sangue e prata, por cima da Costanera.
Ele já nem vai ao Kings, rever os
olhos verdes que lhe vêem, pontuais, todas as noites. Recebe os
jornais do Rio e lê na cama a devastação provocada. O Itamaraty
espinafrado no Senado porque
não tomou providências (que
providências poderia tomar?).
Passeata de estudantes na praia
do Flamengo, ameaça de depredação na embaixada norte-americana, manifesto de intelectuais
encabeçado por Oscar Niemeyer,
Eneida, Mário Pedrosa, Barbosa
Lima Sobrinho, Peregrino Júnior
e outros juniores e peregrinos talentos. Dá bode até lá longe: convocação do Conselho de Segurança da ONU. O "Pravda" taca editorial xingando Kennedy e acusando o Departamento de Estado
de fomentar convulsões na América Latina.
E ele vai ficando. Inventa prisão
de generais, pânico na Bolsa de
Valores e, em Mendonça, tentativa de invasão da cidade pelos
camponeses famintos. Até que
um coronel do Exército local aparece no hotel com a ordem de extradição, expulsando-o do país e
dos braços de sua rumbeira de
olhos verdes, serenos como um lago.
Faz as malas ruminando o plano de escrever um substancioso
ensaio sobre a necessidade de alimentar convulsões político-militares em países onde existem
rumbeiras de olhos verdes e morna voz. Ela vai ao aeroporto.
Quando o enorme DC-8 rola na
pista, ela levanta seu braço -como sua carne era branca!- para
o mais breve e aliviado gesto de
adeus.
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