São Paulo, sexta-feira, 07 de maio de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

O enviado especial

Saltou do avião com entusiasmo. Aquele país podia estourar e, quanto mais estourasse, melhor, ele mandaria notícias para seu distante jornal. Fez um giro pela cidade, soube das novidades, telefonou para alguns amigos e tomou pulso da crise. Coisa banal -viu logo-, simples quartelada de generais contra generais. Mandou sua matéria pelo cabo submarino -não havia e-mail naquele tempo- e foi jantar no Kings.
A penumbra do restaurante cinco estrelas deu-lhe saudades de casa. Bom -pensou-, a situação é simples. Volto daqui a dois dias, esses generais não são de nada, vão brigar por muito tempo e a crise perderá interesse.
Mas o interesse cresce subitamente: um grupo remanescente dos "Lecuona Cuban Boys" apareceu no palco, repertório compacto dos anos 60, "Cubanacan", "Ojos Verdes", uma guarânia paraguaia que estourava no mercado mundial ("Recuerdos de Ypacaraí") e, sobretudo, uma rumbeira de ancas monumentais que inicia um complicado número de strip-tease.
Não foi difícil a aproximação. Chamava-se Maria qualquer-coisa, acho que Maria Rosária ou Maria Dolores, nascera no Chile, criara-se em Cuba. Tinha os olhos verdes, como os da rumba homônima, e morna voz.
- Usted es del Brasil?
Era. E ela gostara de um brasileiro em sua primeira mocidade, um cearense que lhe dera desfalques e uma dor de corno que custara a passar, se é que tinha passado. Perguntou se o Ceará era longe do Rio.
- Mais ou menos. Mas todo brasileiro tem um pouco de cearense.
Ela não pesquisa a veracidade da informação e vão tomar café no bar que ameaçava fechar. A lua é amarela sobre o mar del Plata e de repente estão de mãos dadas, passeando pela Costanera. Nero é o nome do gerente do hotel, sem fazer perguntas, acrescenta um respeitoso "y señora" na ficha do hóspede para uma noite só.
Nero recomenda um vinho para a abertura dos trabalhos, eles recusam o vinho, os trabalhos já estavam suficientemente adiantados, dispensavam os preparativos.
A crise política caminha para o nada. Mais dois telefonemas, o encontro casual com um ex-ministro na sessão do "My Fair Lady", que está em cartaz num cine-teatro da Corrientes, e as notícias vieram fresquinhas e esclarecedoras. Os militares do contra derrubaram os militares do a favor, o presidente estava preso em Olivos, reinava ordem em toda a nação.
- Volto amanhã mesmo. Isso é uma palhaçada!
Mas, à noite, a rumbeira canta com voz morna e revira os olhos verdes, "aqueles olhos verdes, serenos como um lago em cujas quietas águas um dia me mirei". Ele sonha com mares verdes do Caribe, uma ilha sem barbudos nem paredón, mas com praias tropicais, cheiro de conchas, com palmeira, mulher e luar.
- Usted se va mañana?
Sim, a profissão é séria, está ali por conta do jornal, leitores esperam pelas suas notícias, no Brasil teme-se de uma hora para outra um golpe igual. Mas os olhos verdes ficam mais verdes e pedem que ele fique.
Vai ao cabo submarino, senta na máquina e carrega nas tintas. Insinua que haverá greves de metalúrgicos, descontentes com os salários, tumulto na Boca, agressões a estudantes em diversas universidades, inventa um levante de tropa em Bahía Blanca e redige por conta própria um patético pronunciamento do cardeal-arcebispo pedindo cordura e não-derramamento de sangue.
Suas matérias, publicadas na primeira página do primeiro caderno, provocam confusão, dá bode nas agências internacionais. A FP e a UPI, para não serem furadas, confirmam vagamente as notícias, na base do "há rumores de que as tropas de Bahía Blanca ...".
Há rumor à noite, quando os dois se estreitam no hotel e surge uma lua menstruada, suja de sangue e prata, por cima da Costanera.
Ele já nem vai ao Kings, rever os olhos verdes que lhe vêem, pontuais, todas as noites. Recebe os jornais do Rio e lê na cama a devastação provocada. O Itamaraty espinafrado no Senado porque não tomou providências (que providências poderia tomar?). Passeata de estudantes na praia do Flamengo, ameaça de depredação na embaixada norte-americana, manifesto de intelectuais encabeçado por Oscar Niemeyer, Eneida, Mário Pedrosa, Barbosa Lima Sobrinho, Peregrino Júnior e outros juniores e peregrinos talentos. Dá bode até lá longe: convocação do Conselho de Segurança da ONU. O "Pravda" taca editorial xingando Kennedy e acusando o Departamento de Estado de fomentar convulsões na América Latina.
E ele vai ficando. Inventa prisão de generais, pânico na Bolsa de Valores e, em Mendonça, tentativa de invasão da cidade pelos camponeses famintos. Até que um coronel do Exército local aparece no hotel com a ordem de extradição, expulsando-o do país e dos braços de sua rumbeira de olhos verdes, serenos como um lago.
Faz as malas ruminando o plano de escrever um substancioso ensaio sobre a necessidade de alimentar convulsões político-militares em países onde existem rumbeiras de olhos verdes e morna voz. Ela vai ao aeroporto. Quando o enorme DC-8 rola na pista, ela levanta seu braço -como sua carne era branca!- para o mais breve e aliviado gesto de adeus.


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