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"O REENCONTRO"
Narrativa simplifica contradições da guerra
MÁRCIO SELIGMAN-SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Esta pequena obra que agora
chega ao público brasileiro,
"O Reencontro", dentro da primeira fornada da entre nós recém-instalada editora Planeta é,
para dizer o mínimo, polêmica.
O autor, Fred Uhlman, nasceu
em Stuttgart em 1901, exilou-se
com a ascensão do nazismo, em
1933, e acabou por se estabelecer
como advogado na Inglaterra, onde morreu em 1985. Autor de
poucas obras, "O Reencontro" é
sua mais reconhecida realização
literária.
O livro é narrado em primeira
pessoa, na persona de um "self
made man" nova-iorquino, Hans
Schwarz, que conta momentos da
história de sua juventude passada
em sua terra natal, Stuttgart. O
tom autobiográfico da narrativa
salta aos olhos. Mas isso não a torna mais digna.
O evento paradigmático que
Uhlman elegeu para descrever o
momento de virada na história da
Alemanha e de sua vida, no início
dos fatídicos anos 30, foi a amizade de seu alter ego narrador,
Hans, judeu filho de um médico,
com Konradin von Hohenfels,
um nobre descendente de um militar que auxiliara Frederico Barba-Roxa.
A história retrata uma amizade
quase impossível e que foi conquistada por Schwartz. Sua família assimilada considerava-se, antes de mais nada, alemã da Suábia
e apenas secundariamente judaica. O pai de Hans era um orgulhoso alemão que carregava consigo
cicatrizes da Primeira Guerra
Mundial, na qual lutara e posteriormente recebera pelos serviços
prestados à nação uma Cruz de
Ferro de primeira classe.
Uhlman descreve em detalhes o
ambiente pequeno-burguês desta
família alemã judaica e seu desejo
(quase desesperado) de conquistar o espaço na aristocracia local.
A veneração cega do pai com relação ao amigo nobre de seu filho
chega a envergonhar Hans, que
buscava uma naturalidade na sua
inserção no mundo do amigo.
As fantásticas paisagens da Suábia são descritas em tons patrióticos, para realçar este sentimento
de pertença de Hans e sua família
ao universo alemão. Em suma,
lendo o livro, nada poderia justificar a eleição dos judeus como
"bodes expiatórios" por parte dos
nazistas: mas a descrição desta
paisagem natural e cultural é tão
simplificada e pobre, que transforma tudo em uma verdadeira
brincadeira de crianças.
Pode-se inclusive sentir um desejo, a posteriori e indesculpável,
de assimilação, por parte do escritor que redigiu seu livro após o
Holocausto, coroamento nada
idílico da "assimilação" que ele
tenta salvar retratando-a com
tons róseos.
A amizade de Hans e Konradin
tem traços homossexuais devidamente recalcados na narrativa
(escrita em 1960). Este ponto, que
poderia dar uma nervura mais
consistente ao livro, também fica
frouxo. A amizade entre Hans e
Konradin se esvazia na caricatura
das paixões compartilhadas por
coleções e poetas. Talvez a incapacidade de construir uma amizade
autêntica seja o traço mais verdadeiro do livro, ainda que visivelmente involuntário.
Mas a obra não deixa de ter alguns outros momentos de verdade. O professor nazista de Hans,
que descreve a história dos alemães como história do povo ariano que teria sido responsável pela
glória da Grécia e que, agora, renascia com Hitler, não tem nada
de ficção fantasiosa e retrata com
ironia cortante a ideologia da época. Também a relação difícil que o
narrador diz ter com a sua língua
original, o alemão, não banaliza a
vivência de muitos sobreviventes.
O mesmo vale para a sua frase:
"Minhas feridas não cicatrizaram,
e lembrar-me da Alemanha é como tocar nelas".
O Reencontro
Autor: Fred Uhlman
Editora: Planeta
Quanto: R$ 28 (88 págs.)
Márcio Seligman-Silva é professor de
Teoria Literária na Unicamp, autor de,
entre outros, "Ler o Livro do Mundo:
Walter Benjamin, Romantismo e Crítica
Poética" (Iluminuras) e organizador de
"História, Memória, Literatura: O Testemunho na Era das Catástrofes" (Editora
da Unicamp).
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