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São Paulo, sábado, 07 de junho de 2003

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"O REENCONTRO"

Narrativa simplifica contradições da guerra

MÁRCIO SELIGMAN-SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Esta pequena obra que agora chega ao público brasileiro, "O Reencontro", dentro da primeira fornada da entre nós recém-instalada editora Planeta é, para dizer o mínimo, polêmica.
O autor, Fred Uhlman, nasceu em Stuttgart em 1901, exilou-se com a ascensão do nazismo, em 1933, e acabou por se estabelecer como advogado na Inglaterra, onde morreu em 1985. Autor de poucas obras, "O Reencontro" é sua mais reconhecida realização literária.
O livro é narrado em primeira pessoa, na persona de um "self made man" nova-iorquino, Hans Schwarz, que conta momentos da história de sua juventude passada em sua terra natal, Stuttgart. O tom autobiográfico da narrativa salta aos olhos. Mas isso não a torna mais digna.
O evento paradigmático que Uhlman elegeu para descrever o momento de virada na história da Alemanha e de sua vida, no início dos fatídicos anos 30, foi a amizade de seu alter ego narrador, Hans, judeu filho de um médico, com Konradin von Hohenfels, um nobre descendente de um militar que auxiliara Frederico Barba-Roxa.
A história retrata uma amizade quase impossível e que foi conquistada por Schwartz. Sua família assimilada considerava-se, antes de mais nada, alemã da Suábia e apenas secundariamente judaica. O pai de Hans era um orgulhoso alemão que carregava consigo cicatrizes da Primeira Guerra Mundial, na qual lutara e posteriormente recebera pelos serviços prestados à nação uma Cruz de Ferro de primeira classe.
Uhlman descreve em detalhes o ambiente pequeno-burguês desta família alemã judaica e seu desejo (quase desesperado) de conquistar o espaço na aristocracia local. A veneração cega do pai com relação ao amigo nobre de seu filho chega a envergonhar Hans, que buscava uma naturalidade na sua inserção no mundo do amigo.
As fantásticas paisagens da Suábia são descritas em tons patrióticos, para realçar este sentimento de pertença de Hans e sua família ao universo alemão. Em suma, lendo o livro, nada poderia justificar a eleição dos judeus como "bodes expiatórios" por parte dos nazistas: mas a descrição desta paisagem natural e cultural é tão simplificada e pobre, que transforma tudo em uma verdadeira brincadeira de crianças.
Pode-se inclusive sentir um desejo, a posteriori e indesculpável, de assimilação, por parte do escritor que redigiu seu livro após o Holocausto, coroamento nada idílico da "assimilação" que ele tenta salvar retratando-a com tons róseos.
A amizade de Hans e Konradin tem traços homossexuais devidamente recalcados na narrativa (escrita em 1960). Este ponto, que poderia dar uma nervura mais consistente ao livro, também fica frouxo. A amizade entre Hans e Konradin se esvazia na caricatura das paixões compartilhadas por coleções e poetas. Talvez a incapacidade de construir uma amizade autêntica seja o traço mais verdadeiro do livro, ainda que visivelmente involuntário.
Mas a obra não deixa de ter alguns outros momentos de verdade. O professor nazista de Hans, que descreve a história dos alemães como história do povo ariano que teria sido responsável pela glória da Grécia e que, agora, renascia com Hitler, não tem nada de ficção fantasiosa e retrata com ironia cortante a ideologia da época. Também a relação difícil que o narrador diz ter com a sua língua original, o alemão, não banaliza a vivência de muitos sobreviventes. O mesmo vale para a sua frase: "Minhas feridas não cicatrizaram, e lembrar-me da Alemanha é como tocar nelas".


O Reencontro
 
Autor: Fred Uhlman Editora: Planeta Quanto: R$ 28 (88 págs.)



Márcio Seligman-Silva é professor de Teoria Literária na Unicamp, autor de, entre outros, "Ler o Livro do Mundo: Walter Benjamin, Romantismo e Crítica Poética" (Iluminuras) e organizador de "História, Memória, Literatura: O Testemunho na Era das Catástrofes" (Editora da Unicamp).


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