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São Paulo, sábado, 07 de junho de 2003

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INÉDITOS

Em "A Garota do Trombone", o chileno Antonio Skármeta mostra mais um capítulo da trajetória de sua família, que começou no romance "A Boda do Poeta"

Alma de migrante

Leia abaixo trecho do inédito "A Garota do Trombone", de Antonio Skármeta, em que a protagonista Magdalena sagra seu compromisso com a memória do avô.
 
O enterro foi no dia seguinte. Antes que os funcionários da funerária carregassem o ataúde para o enorme carro negro que o levaria ao cemitério, mamãe ergueu a tampa, olhando para mim como quem pergunta se eu queria me despedir do velho. A única janela do quarto estava com a cortina aberta, e o contraste entre aquele oceano de luz domingueira e a palidez de vovô me fez tremer.
Os raios de sol não dissipavam o cheiro acre da morte que já tinha se impregnado no papel de parede do quarto e até na tela do cesto que tinha sido meu berço.
Jovana queria que eu lhe desse um beijo curto e enérgico, mas diante daquelas pálpebras acentuadas pelas sobrancelhas espessas, que teriam combinado melhor com um homem rude, senti uma vertigem de compaixão e apertei meu rosto contra o dele. Ela quis me afastar, mas rejeitei-a com um tapa, e então não teve outra saída a não ser oferecer "um cafezinho" aos rapagões das pompas fúnebres.
Uma espécie de suspiro profundo me acalmava e me proibia de chorar. Na época, eu não conhecia as palavras para descrever exatamente esse suspiro. Mas agora sei dizer que o que eu sentia dentro de mim era o grande nada: a presença de uma distância que fere todas as coisas quando falta o sentido e o fundamento.
Partimos da casa da vila, na "cité", como se dizia na Santiago daqueles tempos, debaixo de um sol africano que patinava pelos antigos trajes de luto daqueles conhecidos que tinham vindo ao enterro com seus netos sacrificando os lençóis do domingo. (...)
A carruagem fúnebre era puxada por dois cavalos cor de azeviche, galhardos, apropriados para aquele ofício, e atrás vinha o táxi onde viajávamos Jovana e eu. Assim, sozinhas, evitávamos as conversas sobre o morto, sussurradas a vovô pelos poucos fiéis com a rotina de longos enterros que os haviam ensinado a mover, como beatas, os lábios franzidos. (...)
E então, a meio quarteirão de casa, ao cruzar a esquina da rua Catedral com a praça Brasil, vi em cima da marquise do cine Alcázar o maior cartaz de propaganda do mundo: um carbonífero gorila segurava entre suas garras uma loura minúscula que dava chutes tentando soltar-se, enquanto uma multidão urbana com os olhos saltados de terror fugia do epicentro deixando a bela totalmente à mercê do monstro.
Num segundo, meu coração deu uma cambalhota: o gorila segurava-se com a garra livre na torre do Empire State Building.
Pus a cabeça para fora da janela do automóvel e com uma potente proeza da minha atenção retive todas as linhas que derramavam sangue sobre o fundo amarelo ao redor da fera: "Fay Wray, Rob Armstrong e Bruce Cabot. Uma produção de David O. Selznick". (...)
-Vão passar "King Kong"! - gritei a Jovana, fora de mim.
-E daí?
-Até que enfim vou poder ver esse filme. Antes eu era pequena demais para poder entrar.
-Não seja idiota. É preciso ser masoquista para pagar só para sentir medo.
Em vez de responder a ela, tirei de minha bolsinha o soberbo e volumoso relógio de prata Empire State Building e anunciei, formal e precisa:
-São 11 e cinco.
-Ninguém perguntou as horas.
-A matinê começa às duas.
Jovana torceu violentamente o pescoço na minha direção e, erguendo a renda do véu que cobria suas pálpebras, começou a me congelar com os olhos.
-A senhorita não está pensando em ir ver filme de macaco no dia em que seu avô está sendo enterrado, não é?
Ergui o rosto e enfrentei sua carranca autoritária:
-Meu avô daria voltas no túmulo se soubesse que não fui ver o filme do gorila em cima do Empire State Building.
-O maior edifício do mundo -caçoou ela, ajeitando o chapeuzinho de feltro.
Nada nem ninguém iria me impedir de ir ver "King Kong" naquela mesma tarde no cine Alcázar. Ia rezar para o gorila pela eternidade da alma de meu avô.
Se todos aqueles fantoches queriam meu silêncio fúnebre e ridiculamente contrito, que viessem então os guardas e os bombeiros para me arrancar do cinema. (...) Eu organizaria minha quadrilha de meninos barulhentos chutando a parte de trás das poltronas para impedir que os guardas se infiltrassem pelas fileiras cobertas de saias e calças curtas.
Nas últimas fileiras, os sabujos da lei receberiam as queixas dos galãs engomadinhos do ginásio, que por um momento desviariam suas línguas dos pescoços das namoradas e os expulsariam do cinema com as mãos pegajosas de todos os fluxos que tiravam do meio das coxas das moças quando as cutucavam com um dedo por baixo das saias escocesas.
Se Jovana não me desse o dinheiro para a matinê, eu pediria emprestado ao "Fagote" Jeria, pagando depois o preço que fosse. Roubaria moedas do cofrinho da paróquia, destinadas a reconstruir a igreja queimada em Maipú, lavaria automóveis na saída do hipódromo, rasgaria o colchão de viúvo de meu avô para tirar aquela moeda de ouro que através dos lençóis holandeses consegui apalpar um dia debaixo de seus ossos, trocaria os candelabros de prata com o italiano Gino por um par de "pikichukis" e entradas suficientes para uma orgia de cinema que durasse o mês inteiro, fugiria da escola, me disfarçaria de homem e navegaria em um barco rumo à Europa, dormiria num hotel parisiense boêmio e faria as gestões necessárias para que meu novo avô fosse Maurice Chevalier.

A OBRA

"A Garota do Trombone"
Autor: Antonio Skármeta
Editora: Record
Quanto: R$ 35 (288 págs.)


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