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INÉDITOS
Em "A Garota do Trombone", o chileno Antonio Skármeta mostra mais um capítulo da trajetória de sua família, que começou no romance "A Boda do Poeta"
Alma de migrante
Leia abaixo trecho do inédito "A
Garota do Trombone", de Antonio Skármeta, em que a protagonista Magdalena sagra seu compromisso com a memória do avô.
O enterro foi no dia seguinte.
Antes que os funcionários da funerária carregassem o ataúde para o enorme carro negro que o levaria ao cemitério, mamãe ergueu
a tampa, olhando para mim como
quem pergunta se eu queria me
despedir do velho. A única janela
do quarto estava com a cortina
aberta, e o contraste entre aquele
oceano de luz domingueira e a palidez de vovô me fez tremer.
Os raios de sol não dissipavam o
cheiro acre da morte que já tinha
se impregnado no papel de parede do quarto e até na tela do cesto
que tinha sido meu berço.
Jovana queria que eu lhe desse
um beijo curto e enérgico, mas
diante daquelas pálpebras acentuadas pelas sobrancelhas espessas, que teriam combinado melhor com um homem rude, senti
uma vertigem de compaixão e
apertei meu rosto contra o dele.
Ela quis me afastar, mas rejeitei-a
com um tapa, e então não teve outra saída a não ser oferecer "um
cafezinho" aos rapagões das
pompas fúnebres.
Uma espécie de suspiro profundo me acalmava e me proibia de
chorar. Na época, eu não conhecia as palavras para descrever exatamente esse suspiro. Mas agora
sei dizer que o que eu sentia dentro de mim era o grande nada: a
presença de uma distância que fere todas as coisas quando falta o
sentido e o fundamento.
Partimos da casa da vila, na "cité", como se dizia na Santiago daqueles tempos, debaixo de um sol
africano que patinava pelos antigos trajes de luto daqueles conhecidos que tinham vindo ao enterro com seus netos sacrificando os
lençóis do domingo. (...)
A carruagem fúnebre era puxada por dois cavalos cor de azeviche, galhardos, apropriados para
aquele ofício, e atrás vinha o táxi
onde viajávamos Jovana e eu. Assim, sozinhas, evitávamos as conversas sobre o morto, sussurradas
a vovô pelos poucos fiéis com a
rotina de longos enterros que os
haviam ensinado a mover, como
beatas, os lábios franzidos. (...)
E então, a meio quarteirão de
casa, ao cruzar a esquina da rua
Catedral com a praça Brasil, vi em
cima da marquise do cine Alcázar
o maior cartaz de propaganda do
mundo: um carbonífero gorila segurava entre suas garras uma loura minúscula que dava chutes tentando soltar-se, enquanto uma
multidão urbana com os olhos
saltados de terror fugia do epicentro deixando a bela totalmente à
mercê do monstro.
Num segundo, meu coração
deu uma cambalhota: o gorila segurava-se com a garra livre na torre do Empire State Building.
Pus a cabeça para fora da janela
do automóvel e com uma potente
proeza da minha atenção retive
todas as linhas que derramavam
sangue sobre o fundo amarelo ao
redor da fera: "Fay Wray, Rob
Armstrong e Bruce Cabot. Uma
produção de David O. Selznick".
(...)
-Vão passar "King Kong"! -
gritei a Jovana, fora de mim.
-E daí?
-Até que enfim vou poder ver
esse filme. Antes eu era pequena
demais para poder entrar.
-Não seja idiota. É preciso ser
masoquista para pagar só para
sentir medo.
Em vez de responder a ela, tirei
de minha bolsinha o soberbo e
volumoso relógio de prata Empire State Building e anunciei, formal e precisa:
-São 11 e cinco.
-Ninguém perguntou as horas.
-A matinê começa às duas.
Jovana torceu violentamente o
pescoço na minha direção e, erguendo a renda do véu que cobria
suas pálpebras, começou a me
congelar com os olhos.
-A senhorita não está pensando em ir ver filme de macaco no
dia em que seu avô está sendo enterrado, não é?
Ergui o rosto e enfrentei sua carranca autoritária:
-Meu avô daria voltas no túmulo se soubesse que não fui ver o
filme do gorila em cima do Empire State Building.
-O maior edifício do mundo
-caçoou ela, ajeitando o chapeuzinho de feltro.
Nada nem ninguém iria me impedir de ir ver "King Kong" naquela mesma tarde no cine Alcázar. Ia rezar para o gorila pela
eternidade da alma de meu avô.
Se todos aqueles fantoches queriam meu silêncio fúnebre e ridiculamente contrito, que viessem
então os guardas e os bombeiros
para me arrancar do cinema. (...)
Eu organizaria minha quadrilha
de meninos barulhentos chutando a parte de trás das poltronas
para impedir que os guardas se
infiltrassem pelas fileiras cobertas
de saias e calças curtas.
Nas últimas fileiras, os sabujos
da lei receberiam as queixas dos
galãs engomadinhos do ginásio,
que por um momento desviariam
suas línguas dos pescoços das namoradas e os expulsariam do cinema com as mãos pegajosas de
todos os fluxos que tiravam do
meio das coxas das moças quando as cutucavam com um dedo
por baixo das saias escocesas.
Se Jovana não me desse o dinheiro para a matinê, eu pediria
emprestado ao "Fagote" Jeria, pagando depois o preço que fosse.
Roubaria moedas do cofrinho da
paróquia, destinadas a reconstruir a igreja queimada em Maipú,
lavaria automóveis na saída do hipódromo, rasgaria o colchão de
viúvo de meu avô para tirar aquela moeda de ouro que através dos
lençóis holandeses consegui apalpar um dia debaixo de seus ossos,
trocaria os candelabros de prata
com o italiano Gino por um par
de "pikichukis" e entradas suficientes para uma orgia de cinema
que durasse o mês inteiro, fugiria
da escola, me disfarçaria de homem e navegaria em um barco
rumo à Europa, dormiria num
hotel parisiense boêmio e faria as
gestões necessárias para que meu
novo avô fosse Maurice Chevalier.
A OBRA
"A Garota do Trombone"
Autor: Antonio Skármeta
Editora: Record
Quanto: R$ 35 (288 págs.)
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