UOL


São Paulo, sábado, 07 de junho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

Skármeta busca na realidade o colorido para seus personagens

FRANCESCA ANGIOLILLO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Talvez à exceção dos autores de ficção científica, é comum que a literatura se volte para o universo de quem a produz. A comprovação dessa assertiva varia de proporção; na prosa do chileno Antonio Skármeta, ela se mostra elevada.
Desde "Soñé que la Nieve Ardia" (1975), a novelística de Skármeta tem se alimentado da mescla entre a história recente do Chile -em especial, o golpe contra Salvador Allende em 1973- e as experiências pessoais, ainda que não num tom memorialístico, com destaque para os acontecimentos após o exílio do escritor na Alemanha, por conta do mesmo fato político.
Em seu romance mais recente, que chega ao Brasil neste mês, a mistura se torna mais pessoal e muito notável.
Mais pessoal porque "A Garota do Trombone" (2001) faz chegar ao Chile a saga (iniciada na Europa em "A Boda do Poeta", de 1999) que alude à trajetória da família do autor desde a Dalmácia, na ex-Iugoslávia, até o porto de Antofagasta, onde nasceria, em 1940, Esteban Antonio Skármeta Branicic.
Mais notável porque, se a futura trilogia -um novo romance é esperado para breve- não tem no nível da trama semelhança total com a realidade, é nela que busca elementos para dar colorido a seus personagens.
Magdalena, a protagonista desse segundo romance "malício" -Gema, na Costa da Malícia, é de onde vêm os personagens-, tem o nome da mãe de Skármeta e muito do próprio.
A menina -dois anos mais nova que o escritor- chega a Antofagasta em 1944, levada por um estranho "anjo da guarda", um trombonista, que, sem nem se apresentar, anuncia solenemente: "Glenn Miller morreu".
A frase enigmática pode ser entendida como uma espécie de senha, resumindo as várias camadas de leitura do livro.
Ela nos diz: esse é um romance que homenageia a resistência dos aliados que Glenn Miller animava na luta contra os nazistas na Segunda Guerra. Resistência da menina, que todo o tempo força seu caminho contra o que seria esperado. Resistência do próprio Chile, em sua busca pela democracia.
É um livro que evoca o período em que os americanos ainda eram os heróis de boa parte do mundo ocidental. Não só por terem combatido no lado "certo" da trincheira, mas também por produzirem os valores culturais que então começavam a se espalhar, seguindo o rastro de pólvora dessa mesma guerra. Valores que animaram a adolescência do autor e que são revividos nos gostos da menina, herdados de seu criador.
E é, sobretudo, um romance escrito por alguém de origens estrangeiras, na voz de alguém de origens estrangeiras: a resistente, americanófila e migrante Magdalena. Vivendo no tempo que viu crescer o próprio Skármeta, ela assina o livro dentro do livro, em que conta a sua história.
A história: sem pai nem mãe, mas supostamente neta de Alia Emar, a protagonista feminina de "A Boda do Poeta", Magdalena é consignada pelo misterioso músico diretamente no armazém de Esteban Coppeta.
A visita surpreendente corta mais um dia que o homem gastava na espera infrutífera de sua amada, de quem fora definitivamente separado ainda na outra guerra mundial -a amada, o leitor já deve ter adivinhado, é Alia Emar.
É o amor de Esteban que lhe rende um inesperado (e improvável) laço familiar com Magdalena: ele seria seu avô. Não há provas para o parentesco, porém não importa: sozinhos, menina e homem aceitam prontamente o elo que lhes é oferecido.
Skármeta não dá a seus personagens muito tempo para se acostumar à rotina. A segunda grande reviravolta do romance acontece já em Santiago.
Diante da morte de Esteban, Magdalena se vê novamente lançada ao desarraigo. E assume a missão de cumprir o destino que ela acredita ter sido "roubado" ao avô: chegar a Nova York, onde ele acreditava que poderia ter enriquecido. Tocar a emblemática figura do Empire State Building -"o prédio mais alto do mundo", como repetia Esteban; o cenário de seu filme preferido, "King Kong"; e, mais que tudo, o símbolo da vida que o velho gostaria de ter tido.
Buscando um talismã e homenageando suas origens nebulosas, Magdalena se rebatiza Alia Emar Coppeta. Seu caminho, no entanto, vai menos em direção dos EUA que do próprio Chile.
Aos poucos, a terra que a acolheu se imiscui nos objetivos da garota do trombone, por meio de ícones de sua história recente, como os poetas Gabriela Mistral e Pablo Neruda e o então candidato à Presidência Salvador Allende.
Usando as aventuras de Magdalena/Alia Emar, Skármeta nos fala de como as surpresas do cotidiano podem desviar até o caminho mais obsessivamente traçado e levar uma inequívoca alma de migrante a fincar raízes numa pátria que não escolheu. É pena, contudo, que nem sempre o resultado esteja à altura do belo tema que o inspira.


Avaliação:   


Texto Anterior: Inéditos: Alma de migrante
Próximo Texto: Walter Salles: Hideo Nakata e o novo cinema de terror japonês
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.