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São Paulo, sábado, 07 de junho de 2003

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WALTER SALLES

Hideo Nakata e o novo cinema de terror japonês

Algo está mudando na geografia cinematográfica contemporânea. O melhor cinema jovem vem hoje da Argentina -Pablo Trapero e Lucrecia Martel, ambos prestes a rodar seus novos filmes, que o digam. Cineastas de países como a Turquia e o Sri Lanka estão encantando o mundo dos festivais. Mais: a renovação de um gênero cinematográfico clássico, o de filmes de terror, ganha cada vez mais vigor no Japão.
Tradicionalmente, o cinema de terror é o território de especialistas, como Roger Corman ou Dario Argento. Mas também há o caso de grandes diretores como Kubrick ("O Iluminado"), Polanski ("Repulsa ao Sexo" e "O Bebe de Rosemary") e Robert Wise ("Desafio do Além"), que realizaram ótimos filmes se aventurando no gênero.
Estranhamente, a ebulição criativa que ocorre hoje no Japão é uma simbiose dessas duas tendências. Filmes de terror realizados por especialistas que são também cineastas-cinéfilos, diretores extremamente refinados. O primeiro sobressalto ocorreu há 15 anos, com "Tetsuo 1", de Shinya Tsukamoto. Kiyoshi Kurosawa, selecionado neste ano em Cannes, também passou pelo gênero. Mas, se há um nome a ressaltar nessa nova onda nipônica, é o de Hideo Nakata.
Diga-se logo de cara: Nakata não gosta de cinema de terror. Gosta, ao contrário, de Hitchcock, de Cronenberg e de Carl Dreyer. Estudou jornalismo, e não cinema, na Universidade de Tóquio. É um asceta, um cineasta de grande rigor conceitual, que despreza a tecnologia de ponta e acha que efeito especial é golpe abaixo da cintura.
Seu primeiro filme, "A Atriz Fantasma", foi realizado para a TV. O filme pegava o gênero pela contramão: era angustiante pelo que não mostrava, pelo que estava fora de campo. Os fantasmas eram sugeridos, apenas. Em seguida, Nakata adaptou um romance do Stephen King japonês, Koji Suzuki: "Ringu". O filme estourou em toda a Ásia e deu origem a uma série de cinema e a outra de TV, além do remake americano ("O Chamado", com a lynchiana Naomi Watts).
O extraordinário sucesso de "Ringu" permitiu a Nakata realizar "Chaos", história de um sequestro com forte influência hitchcockiana. Outro sucesso, que também está sendo refilmado nos EUA, com Harrison Ford e Benicio del Toro. Finalmente, no ano passado, Nakata realizou o mais belo e crepuscular de seus filmes: "Água Escura", um clássico do gênero.
"Água Escura" é fundamentado em personagens sólidos, realistas. O filme começa com a separação de um casal jovem. Para garantir a guarda da filha de dez anos, a mãe se vê obrigada a alugar um apartamento às pressas. O prédio é isolado, pouco habitado. Chove e a água começa a invadir o teto do apartamento. Passos são ouvidos no apartamento de cima, supostamente vazio. Os demônios dos personagens começam a se mesclar com fenômenos aparentemente inexplicáveis. O clima de angústia e solidão passa a envolver o espectador de forma hipnótica e irreversível -tão irreversível quanto a angústia humana no Japão pós-moderno.
Um corredor vazio. Um elevador que sobe sem ninguém dentro. Um monitor de TV caindo aos pedaços, vigiando inutilmente o prédio. A economia dos planos é surpreendente. Estamos com os personagens. Por isso vamos sofrer com eles e sentir as mesmas sensações de abandono, claustrofobia... e medo.
"Abordei o cinema de terror de forma atípica, documental", diz Nakata. "Penso que os espectadores estão paralisados pelos filmes hollywoodianos, intoxicados pelos efeitos especiais e pelo excesso de estímulos sonoros. Prefiro suscitar a emoção pelo caminho contrário. Cortando a música, em vez de aumentar o volume."
Graças à extraordinária resposta do público no Japão e na Ásia, essa forma minimalista e sofisticada de narração começa a dar filhotes. Uma nova onda de filmes de terror está surgindo na terra de Ozu e Mizoguchi. Te cuida, Matrix.


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