São Paulo, quarta-feira, 07 de junho de 2006

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MARCELO COELHO

Pra frente, Brasil

O cidadão pode consumir como nunca antes; natural que retribua essa alegria

VIRO A esquina e vejo que a padaria de costume embandeirou-se da noite para o dia. Em cada cruzamento, os habituais vendedores de bala passaram a oferecer bonés, fitinhas e camisetas do Brasil. Nas calçadas, a população veste uniforme. Cruzo com Ronaldinho Gaúcho onde quer que eu passe.
Sinto-me num labirinto de espelhos. Nenhum reflete o meu rosto, mas pouco importa. Sai de campo o PCC, entra a seleção. O paralelo não é tão gratuito quanto parece. Mais do que em eventos como a Virada Cultural e a maratona que ocupou as ruas de São Paulo no último domingo, trata-se agora de uma reconquista do território.
Se andar pela cidade continua tão perigoso como antes, a simbologia verde e amarela nos muros e no asfalto vem substituir virtualmente a presença física dos cidadãos que, com prudência, se fecham dentro de casa para assistir ao noticiário esportivo na TV. Claro, o fenômeno se repete em toda Copa do Mundo, mas a febre agora me parece maior.
É também maior, sem dúvida, o favoritismo da seleção. Mas o que com certeza cresceu de quatro anos para cá é o consumo popular: camisetas, tinta e bandeirinhas ficaram mais em conta.
Não sou economista, mas acho que, além da categoria dos "bens duráveis" (automóveis, geladeiras) e "não-duráveis", deve haver uma terceira, a dos bens "nada duráveis", vendidos nas lojinhas de um real e nas bancas de camelô: brinquedinhos chineses que quebram em menos de um dia, canetas luminosas que não funcionam, óculos escuros com armação feita de chiclete ressecado, suportes de celular montados a partir de espirais de caderno escolar jogado fora...
Aliás, nem sei se usam cadernos nas escolas da rede pública. Só sei que certa vez entrei numa dessas lojas de bobagens e acabei levando um produto que me pareceu útil: uma luminariazinha portátil, com lâmpada minúscula, numa armação que dobrava em três, acoplada a uma espécie de pregador de roupa. Serviria, em tese, para você prender num livro e ficar lendo de madrugada, sem perturbar quem estiver dormindo ao lado. Custou cinco reais e durou dois dias: é que as pilhas não paravam no lugar e o interruptor não interrompia nada, a não ser minha leitura.
Não fiquei frustrado: a coisa era bonitinha e tive o prazer de optar, no momento da aquisição, entre o modelo verde, o roxo e o azul. Uma necessidade minha foi atendida: não a de ler de madrugada, mas a de consumir alguma coisa; não a de iluminação, mas a de ofuscamento por meio de um prazer fugaz, colorido e cintilante. Ainda nesse gênero de produtos, ia falar nas fitinhas do Bonfim. Mas seria um erro: são a coisa mais durável que existe, e até seria boa idéia fabricá-las bem frágeis, para que nossos desejos fossem realizados mais depressa. Mas, nesse caso, santo Expedito resolve. Esqueci-me também dos relógios de dez reais e dos walkmen mais baratos ainda. O fato é que, com quase nada no bolso, o cidadão pode consumir como nunca antes; natural que, neste mês, retribua essa alegria cobrindo-se com as cores do Brasil.
Quanto aos bens duráveis, torna-se até justo, nesse quadro, que sejam pagos em prestações a perder de vista. Ainda que escorchantes, os juros estão mais baixos do que na última Copa, os aparelhos de DVD e os computadores baratearam muitíssimo e a recompensa de possuí-los hoje não deixa de justificar um endividamento eterno.
Nem falo dos cartões de crédito, cuja popularização se tornou, provavelmente, um dos motores da economia e fonte de dramas pessoais comparáveis aos do jogo legalizado. Seria tema de outro artigo.
Um sistema muito "pós-moderno" de prazer imediato e dívidas impagáveis para o futuro acaba impondo para todo mundo novas relações com a história, com o modo em que compreendem o passado, o presente e o futuro. O teórico americano Fredric Jameson escreveu bastante sobre o tema, e o caso vale tanto para o Brasil quanto para os EUA, onde o endividamento da população é gigantesco. A euforia de JK, como a brasilidade dos anos 70, visava um processo de desenvolvimento econômico a longo prazo. Essa perspectiva, mesmo aos mais fervorosos entusiastas de Lula e do Banco Central, hoje parece irrealista.
O futuro -nas eleições como no futebol- se resume ao velho adágio de não mexer no time que está ganhando. Mesmo que os bancos sejam quem ganhe mais, estamos todos -para lembrar a marchinha da Copa- "unidos num só coração".


@ - coelhofsp@uol.com.br

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