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MARCELO COELHO
Pra frente, Brasil
O cidadão pode consumir como nunca antes; natural que retribua essa alegria
VIRO A esquina e vejo que a padaria de costume embandeirou-se da noite para o dia. Em
cada cruzamento, os habituais vendedores de bala passaram a oferecer
bonés, fitinhas e camisetas do Brasil.
Nas calçadas, a população veste uniforme. Cruzo com Ronaldinho Gaúcho onde quer que eu passe. Sinto-me num labirinto de espelhos. Nenhum reflete o meu rosto,
mas pouco importa. Sai de campo o
PCC, entra a seleção. O paralelo não
é tão gratuito quanto parece. Mais
do que em eventos como a Virada
Cultural e a maratona que ocupou as
ruas de São Paulo no último domingo, trata-se agora de uma reconquista do território.
Se andar pela cidade continua tão
perigoso como antes, a simbologia
verde e amarela nos muros e no asfalto vem substituir virtualmente a
presença física dos cidadãos que,
com prudência, se fecham dentro de
casa para assistir ao noticiário esportivo na TV. Claro, o fenômeno se
repete em toda Copa do Mundo,
mas a febre agora me parece maior.
É também maior, sem dúvida, o favoritismo da seleção.
Mas o que com certeza cresceu de
quatro anos para cá é o consumo popular: camisetas, tinta e bandeirinhas ficaram mais em conta.
Não sou economista, mas acho
que, além da categoria dos "bens duráveis" (automóveis, geladeiras) e
"não-duráveis", deve haver uma terceira, a dos bens "nada duráveis",
vendidos nas lojinhas de um real e
nas bancas de camelô: brinquedinhos chineses que quebram em menos de um dia, canetas luminosas
que não funcionam, óculos escuros
com armação feita de chiclete ressecado, suportes de celular montados
a partir de espirais de caderno escolar jogado fora...
Aliás, nem sei se usam cadernos
nas escolas da rede pública. Só sei
que certa vez entrei numa dessas lojas de bobagens e acabei levando um
produto que me pareceu útil: uma
luminariazinha portátil, com lâmpada minúscula, numa armação que
dobrava em três, acoplada a uma espécie de pregador de roupa.
Serviria, em tese, para você prender num livro e ficar lendo de madrugada, sem perturbar quem estiver dormindo ao lado. Custou cinco
reais e durou dois dias: é que as pilhas não paravam no lugar e o interruptor não interrompia nada, a não
ser minha leitura.
Não fiquei frustrado: a coisa era
bonitinha e tive o prazer de optar, no
momento da aquisição, entre o modelo verde, o roxo e o azul. Uma necessidade minha foi atendida: não a
de ler de madrugada, mas a de consumir alguma coisa; não a de iluminação, mas a de ofuscamento por
meio de um prazer fugaz, colorido e
cintilante. Ainda nesse gênero de
produtos, ia falar nas fitinhas do
Bonfim. Mas seria um erro: são a
coisa mais durável que existe, e até
seria boa idéia fabricá-las bem frágeis, para que nossos desejos fossem
realizados mais depressa. Mas, nesse caso, santo Expedito resolve.
Esqueci-me também dos relógios
de dez reais e dos walkmen mais baratos ainda. O fato é que, com quase
nada no bolso, o cidadão pode consumir como nunca antes; natural
que, neste mês, retribua essa alegria
cobrindo-se com as cores do Brasil.
Quanto aos bens duráveis, torna-se até justo, nesse quadro, que sejam
pagos em prestações a perder de vista. Ainda que escorchantes, os juros
estão mais baixos do que na última
Copa, os aparelhos de DVD e os
computadores baratearam muitíssimo e a recompensa de possuí-los
hoje não deixa de justificar um endividamento eterno.
Nem falo dos cartões de crédito,
cuja popularização se tornou, provavelmente, um dos motores da economia e fonte de dramas pessoais
comparáveis aos do jogo legalizado.
Seria tema de outro artigo.
Um sistema muito "pós-moderno" de prazer imediato e dívidas impagáveis para o futuro acaba impondo para todo mundo novas relações
com a história, com o modo em que
compreendem o passado, o presente
e o futuro. O teórico americano Fredric Jameson escreveu bastante sobre o tema, e o caso vale tanto para o
Brasil quanto para os EUA, onde o
endividamento da população é gigantesco. A euforia de JK, como a
brasilidade dos anos 70, visava um
processo de desenvolvimento econômico a longo prazo. Essa perspectiva, mesmo aos mais fervorosos entusiastas de Lula e do Banco Central,
hoje parece irrealista.
O futuro -nas eleições como no
futebol- se resume ao velho adágio
de não mexer no time que está ganhando. Mesmo que os bancos sejam quem ganhe mais, estamos todos -para lembrar a marchinha da
Copa- "unidos num só coração".
@ - coelhofsp@uol.com.br
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