São Paulo, segunda, 7 de junho de 1999

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NARA LEÃO
Trajetória conta, sozinha, saga da moderna MPB

da Reportagem Local

De tez artística aparentemente discreta, Nara Leão parecia, em seus anos de maior atividade -os 60-, uma instituição à parte no corpo da "moderna" MPB.
Parecia a antítese de sua maior antagonista, Elis Regina, mas também a da afilhada Maria Bethânia e, ainda, de Gal Costa. Em uma frase, movia-se por conta própria.
Tímida congregante dos personagens históricos da bossa nova, a partir de 1958, tornou-se musa do movimento, mesmo que fosse ainda artista amadora -e retraída-, sem nem discos gravados.
Quando pôde estrear em LP próprio, se chegou a Carlos Lyra, líder da dissidência politizada da bonachona bossa nova -era o nascimento da canção de protesto.
"Nara" (64) surgiu provocativo: cheio de canções engajadas de Lyra, Gianfrancesco Guarnieri e Edu Lobo, aproximou também a "dondoca" zona sul de Cartola, Nelson Cavaquinho, Zé Ketti e Elton Medeiros, sambistas de morro então jogados às traças.
No show "Opinião", reuniu-se, madame, ao sambista carioca Zé Ketti e ao forrozeiro maranhense João do Vale, em mistura de classes que deve ter soado imoral aos ouvidos do regime militar. Daí nasceu "Carcará", até hoje ícone da canção de protesto e um dos temas da vida de sua substituta no "Opinião", Maria Bethânia.
Nara já havia se percebido farol apontador de novas direções. Ainda na chave do samba, passou a reveladora de novos valores. Em "Nara Pede Passagem" (66), foi pioneira em gravar os sambistas Paulinho da Viola, Chico Buarque, Sidney Miller, Jards Macalé.
Elis tentou correr atrás do prejuízo, opondo o canto distanciado/ delicado de Nara a desabalado derrame vocal e descobrindo Gilberto Gil, Jair Rodrigues, Milton Nascimento. Nara chegara antes.
Feroz ao se declarar oponente do regime -afirmou que o Exército podia entender de canhão e metralhadora, mas de política, nada-, ficou sob a mira do governo, enquanto se fixava mascote meiga do Brasil, ao vencer o festival de música da Record com a simplória "A Banda", de Chico Buarque.
Nunca mais deixou de gravá-lo, mas, inquieta, começou a se "tropicalizar" antes que mesmo o tropicalismo mostrasse suas garras. Em "Nara" (67), atualizou Carmen Miranda e Ary Barroso.
Era natural a participação na tropicália, que concretizou como intérprete altiva da freudiana "Lindonéia", de Caetano, cantando em registro humanista o que em Gal Costa seria a fundação do canto pós-moderno, maquinado.
A associação, ainda que breve, redundou num dos grandes discos de sua carreira, "Nara Leão" (68), viagem tropicalista regida e arranjada pelo maestro Rogério Duprat.
Ainda inventou um disco-síntese de todas as rupturas já vividas, "Coisas do Mundo" (69), mas estava sendo colhida pela revolução pós-industrial tropicalista.
Durante exílio simbólico em Paris, em 70, gravou "Dez Anos Depois", que só seria editado aqui em 71. Era puro refluxo pós-AI-5, o primeiro disco de repertório ortodoxo de bossa em sua carreira. Vanguarda do retrocesso, Nara se retraía na retração geral.
Tornou sua produção drasticamente esparsa nos 70. Em "Meu Primeiro Amor" (75), dedicou-se apenas a temas infantis e folclóricos. Ainda que plenamente engajado, o LP coletivo "Os Saltimbancos" (77) era outro projeto infantil.
Novo choque veio em 78. Se desde 66 já elogiava os "alienados" Roberto e Erasmo Carlos, agora dedicou um LP, "...E Que Tudo Mais Vá pro Inferno", a suas canções românticas. Era tanto rendição ao fogo pop da dupla quanto admissão de insucesso político. Restava declarar-se livre, em procedimento até hoje perseguido pela antítese trovejante Bethânia.
Em derradeira tentativa de achar o não-óbvio, associou-se, em "Romance Popular" (81), ao cearense Fagner, em estilizado prumo de neo-protesto, enquanto se "popizava" cantando Roberto de Carvalho e Robertinho de Recife.
Padecendo desde 79 de desmaios, ausências e perdas de memória de causa obscura, que se consumariam na morte por câncer cerebral, seguiu um caminho de volta cada vez mais radical.
Voltou ao samba de raiz ("Meu Samba Encabulado", 83), à bossa (em série de discos "exilados", cada vez mais repetitivos e menos interessantes) e, enfim, na matriz externa da bossa, a das canções antigas/elegantes -sempre vertidas ao português- dos Gershwin, Hart & Rodgers, Herman Hupfeld e outros vários, em "Meus Sonhos Dourados" (87) e no póstumo "My Foolish Heart" (89).
A fera atuante esmorecera, e razões não faltavam. Fosse como fosse, antecipara quase tudo que esteve por acontecer enquanto se manteve engajada em sua arte. Não são muitos os artistas cuja obra basta para contar a história de uma música popular. No Brasil pós-58, talvez Nara seja deles o maior.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)



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