São Paulo, sábado, 07 de julho de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"O CINEMA E A INVENÇÃO DA VIDA MODERNA"

Obra retrata o moderno nas telas

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

Envolvido pela densidade e velocidade crescentes do trânsito urbano, numa série de choques e colisões, desorientado pela inflação de anúncios, painéis e vitrines da cada vez mais frenética atividade comercial, perdido em meio à balbúrdia de uma multidão cada vez maior, o cidadão das (caóticas) metrópoles do começo do século era a cobaia de uma experiência neurológica sem precedentes na história.
"O rápido agrupamento de imagens em mudança, a descontinuidade acentuada ao alcance de um simples olhar e a imprevisibilidade de impressões impetuosas: essas são as condições psicológicas criadas pela metrópole", dizia, em 1903, Georg Simmel, em "A Metrópole e a Vida Mental".
Dos "cultural studies" do livro "O Cinema e a Invenção da Vida Moderna", os melhores não são tanto os que partem de uma concepção socioeconômica da modernidade, mas aqueles que partem de seu desdobramento em uma concepção neurológica da modernidade.
Em seu artigo "Modernidade, Hiperestímulo e o Início do Sensacionalismo Popular", Ben Singer evidencia a dubiedade do papel exercido pela imprensa ilustrada à época. As ilustrações da imprensa sensacionalista denunciavam os perigos do cotidiano moderno ao mesmo tempo em que contribuíam, com suas imagens alarmantes e grotescas, para o "fenômeno de hiperestímulo" da modernidade.
Singer filia o primeiro cinema (o agora chamado "cinema de atrações") a essa nova estética de excitação e estimulação sensoriais decorrente da vida moderna. Era o que dizia Walter Benjamim: "O cinema corresponde a mudanças profundas no aparelho aperceptivo, mudanças que são experimentadas, em escala individual, pelo homem na rua, no tráfego da cidade grande e, em escala histórica, por qualquer cidadão dos dias de hoje (...). Aquilo que determina o ritmo de produção de uma esteira rolante é a base do ritmo de recepção do cinema".
Intrinsecamente fragmentária e efêmera (descontínua), a experiência moderna da visão de Benjamim encontrava a sua síntese no "choque" (como lembra Leo Charney em "Num Instante: O Cinema e a Filosofia na Modernidade"). O "choque" é o presente sensório (o único possível), a sensação fugaz de estar presente no presente. O "choque" é o instante (em que o passado e o futuro colidem), e o cinema é a sua arte.
Daí ser o "choque" a ponte entre o primeiro cinema e a "avant-garde" dos anos 20: a "estética do espanto" e a "cultura do instante" do "cinema de atrações" desdobram-se, com o vanguardismo, no conceito eisensteiniano de "montagem de atrações" e na noção de "fotogenia" de Epstein.
Para Jean Epstein, como nos lembra Charney, a essência do cinema não residia na narratividade, mas em momentos evanescentes de sensações fortes que certas imagens propiciariam, espécies de "trancos de atenção". O cinema de Epstein situa-se nessa tênue fronteira entre atenção e distração que Jonathan Crary aponta na experiência moderna.
Tentando surpreender num quadro de Manet ("Na Estufa") o continuum entre atenção e desatenção inerente à vida moderna, Crary ressalta que foi justamente no momento em que enfraqueciam drasticamente as estruturas estáveis de percepção que a lógica dinâmica do capital tentou impor um regime disciplinar de atenção.
Da mesma forma, Tom Gunning demonstra em seu artigo como foi necessário ao sistema legal controlar e regular o "tráfego de imagens" (esse ouro simbólico da modernidade) para dar fim à "fantasmagoria da identidade" gerada por uma modernidade descontínua. O capital passaria a transformar em algo previsível e, portanto, rentável a frenética circulação de imagens que criara.
É o nascimento da sociedade de espetáculo. Tomando os espetáculos pré-cinematográficos da Paris do fim do século 19 (os panoramas, os museus de cera e até mesmo o necrotério público) como "corolários visuais da imprensa popular", Vanessa Schwartz prova que os primeiros espectadores de cinema já estavam acostumados ao efeito-realidade dos espetáculos modernos e a uma realidade que se tornava cada vez mais espetacular.
Para transformar esse público numa massa de consumidores fiéis, a (então incipiente) indústria de cinema tenderá cada vez mais a camuflar (em forma de narrativa) essa descontinuidade inerente à arte cinematográfica. Será preciso esperar os filmes (modernos) do pós-guerra para que o cinema redescubra, em meio às ruínas, a sua essência descontínua.

Cinema e a Invenção da Vida Moderna Cinema and the Invention of Modern Life
    
Organização: Leo Charney e Vanessa Schwartz
Tradução: Regina Thompson
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 68 (567 págs.)



Texto Anterior: "Idéias teatrais": Faria expõe tradição e redimensiona o teatro atual
Próximo Texto: Resenha da semana: Ponto cego
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.