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"O CINEMA E A INVENÇÃO DA VIDA MODERNA"
Obra retrata o moderno nas telas
TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA
Envolvido pela densidade e
velocidade crescentes do
trânsito urbano, numa série de
choques e colisões, desorientado
pela inflação de anúncios, painéis
e vitrines da cada vez mais frenética atividade comercial, perdido
em meio à balbúrdia de uma multidão cada vez maior, o cidadão
das (caóticas) metrópoles do começo do século era a cobaia de
uma experiência neurológica sem
precedentes na história.
"O rápido agrupamento de
imagens em mudança, a descontinuidade acentuada ao alcance de
um simples olhar e a imprevisibilidade de impressões impetuosas:
essas são as condições psicológicas criadas pela metrópole", dizia,
em 1903, Georg Simmel, em "A
Metrópole e a Vida Mental".
Dos "cultural studies" do livro
"O Cinema e a Invenção da Vida
Moderna", os melhores não são
tanto os que partem de uma concepção socioeconômica da modernidade, mas aqueles que partem de seu desdobramento em
uma concepção neurológica da
modernidade.
Em seu artigo "Modernidade,
Hiperestímulo e o Início do Sensacionalismo Popular", Ben Singer evidencia a dubiedade do papel exercido pela imprensa ilustrada à época. As ilustrações da
imprensa sensacionalista denunciavam os perigos do cotidiano
moderno ao mesmo tempo em
que contribuíam, com suas imagens alarmantes e grotescas, para
o "fenômeno de hiperestímulo"
da modernidade.
Singer filia o primeiro cinema (o
agora chamado "cinema de atrações") a essa nova estética de excitação e estimulação sensoriais decorrente da vida moderna. Era o
que dizia Walter Benjamim: "O
cinema corresponde a mudanças
profundas no aparelho aperceptivo, mudanças que são experimentadas, em escala individual,
pelo homem na rua, no tráfego da
cidade grande e, em escala histórica, por qualquer cidadão dos dias
de hoje (...). Aquilo que determina
o ritmo de produção de uma esteira rolante é a base do ritmo de
recepção do cinema".
Intrinsecamente fragmentária e
efêmera (descontínua), a experiência moderna da visão de Benjamim encontrava a sua síntese
no "choque" (como lembra Leo
Charney em "Num Instante: O Cinema e a Filosofia na Modernidade"). O "choque" é o presente
sensório (o único possível), a sensação fugaz de estar presente no
presente. O "choque" é o instante
(em que o passado e o futuro colidem), e o cinema é a sua arte.
Daí ser o "choque" a ponte entre
o primeiro cinema e a "avant-garde" dos anos 20: a "estética do espanto" e a "cultura do instante"
do "cinema de atrações" desdobram-se, com o vanguardismo,
no conceito eisensteiniano de
"montagem de atrações" e na noção de "fotogenia" de Epstein.
Para Jean Epstein, como nos
lembra Charney, a essência do cinema não residia na narratividade, mas em momentos evanescentes de sensações fortes que
certas imagens propiciariam, espécies de "trancos de atenção". O
cinema de Epstein situa-se nessa
tênue fronteira entre atenção e
distração que Jonathan Crary
aponta na experiência moderna.
Tentando surpreender num
quadro de Manet ("Na Estufa") o
continuum entre atenção e desatenção inerente à vida moderna,
Crary ressalta que foi justamente
no momento em que enfraqueciam drasticamente as estruturas
estáveis de percepção que a lógica
dinâmica do capital tentou impor
um regime disciplinar de atenção.
Da mesma forma, Tom Gunning demonstra em seu artigo como foi necessário ao sistema legal
controlar e regular o "tráfego de
imagens" (esse ouro simbólico da
modernidade) para dar fim à
"fantasmagoria da identidade"
gerada por uma modernidade
descontínua. O capital passaria a
transformar em algo previsível e,
portanto, rentável a frenética circulação de imagens que criara.
É o nascimento da sociedade de
espetáculo. Tomando os espetáculos pré-cinematográficos da
Paris do fim do século 19 (os panoramas, os museus de cera e até
mesmo o necrotério público) como "corolários visuais da imprensa popular", Vanessa
Schwartz prova que os primeiros
espectadores de cinema já estavam acostumados ao efeito-realidade dos espetáculos modernos e
a uma realidade que se tornava
cada vez mais espetacular.
Para transformar esse público
numa massa de consumidores
fiéis, a (então incipiente) indústria de cinema tenderá cada vez
mais a camuflar (em forma de
narrativa) essa descontinuidade
inerente à arte cinematográfica.
Será preciso esperar os filmes
(modernos) do pós-guerra para
que o cinema redescubra, em
meio às ruínas, a sua essência descontínua.
Cinema e a Invenção da Vida
Moderna
Cinema and the Invention of Modern Life
Organização: Leo Charney e Vanessa
Schwartz
Tradução: Regina Thompson
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 68 (567 págs.)
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