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RESENHA DA SEMANA
Ponto cego
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Apesar da tentativa de explicação no prefácio, não
fica totalmente claro o que motivou a seleção dos 11 textos reunidos na coletânea "América
-°Clássicos do Conto Norte-Americano", publicada pela Iluminuras, além do fato de serem
todos assinados por autores
consagrados do século 19 e início do século 20.
Não foi certamente o ineditismo. Não é a primeira vez que "A
Fera na Selva", de Henry James,
"O Gato Preto", de Edgar Allan
Poe, ou "Benito Cereno", de
Herman Melville, são publicados no Brasil. "O Bote", de Stephen Crane, aqui traduzido por
"O Barco Aberto", e "O Pagão",
de Jack London, foram lançados
há pouco tempo pela Dantes
Editora.
Também não parece ter sido a
afinidade temática ou de estilo,
mas, antes, como diz a introdução, a diversidade. Os outros autores são: Nathaniel Hawthorne,
Mark Twain, Ambrose Bierce,
Hamlin Garland, Edith Wharton e Sherwood Anderson.
Este último merece menção
especial pelo relativo desconhecimento de sua obra no Brasil,
escandaloso a julgar pelo que
nela há de excepcional. Anderson (1876-1941) é autor de um
dos livros mais importantes da
literatura americana do século
20, "Winesburg, Ohio", entre
outros volumes de contos, como
"O Triunfo do Ovo", de onde
vem este "Quero Saber Por
Quê".
O conto narra a história de um
adolescente maluco por cavalos,
no Kentucky do início do século
20. "Eu queria ser um negro", ele
confessa de um modo negligente no começo do texto, só para
poder trabalhar nas cocheiras e
ficar mais perto dos animais.
É um desejo que revela muito
da prosa de Anderson, mestre
da lógica dos afetos dos que estão à margem, das crianças e dos
loucos, que sofrem por sentirem
o contrário do lugar-comum. É
o que dá uma estranha autenticidade à sua prosa, cujo segredo
está sempre no que há de desviante nos indivíduos.
Graças à intensidade de sua
paixão pelos cavalos, o adolescente vai descobrir o próprio desejo, a incomunicabilidade e a
solidão que ele acarreta. É o que
faz dele um indivíduo, a diferença que o leva a agir e sentir como
os outros não agem ou sentem.
E ele quer saber por quê. Os textos de Anderson não chegam a
dar a resposta, mas levam o leitor a ver em experiências solitárias que lhe são estranhas o princípio da sua própria diferença.
"Benito Cereno", o mais longo
dos textos da coletânea, também
faz uma representação da incomunicabilidade do outro. Só
que por meio de uma alegoria
do horror. O capitão de um baleeiro americano ao largo do
Chile resolve oferecer ajuda a
um navio à deriva. Ao chegar a
bordo, depara-se com uma situação peculiar. Trata-se de um
navio negreiro onde os escravos
estão soltos e obedecem as ordens de um debilitado comandante espanhol, Benito Cereno.
O caos da situação é regido
por uma ordem surrealista e
enigmática que o recém-chegado não consegue interpretar. O
medo e o suspense diante da
iminência do perigo vão crescendo na cabeça do leitor na
mesma proporção da cegueira e
da ignorância do capitão do baleeiro, que vê nos negros uma
tendência inata a servir e obedecer. Na sua boa-fé (um eufemismo para a sua estupidez), ele
não percebe o cerco se fechando
à sua volta.
O relato representa a um só
tempo a ilusão do homem branco e a perversidade e a selvageria
do que escapa à sua compreensão, os negros, sem jamais explicitar a relação de conflito entre
os dois, o que estaria por trás de
um ato violento de desespero, a
própria escravidão. É aí, nesse
sintomático ponto cego, que está a pedra de toque da narrativa.
Melville faz o leitor acreditar
que está vendo o que o capitão,
no seu paternalismo tático ou
obtuso, não consegue ver, quando na verdade essa visão é análoga à cegueira dele. Pela metáfora da cegueira do protagonista, crente das regras estabelecidas pela sociedade em que vive,
o leitor atento percebe afinal a
relatividade e os limites da sua
própria visão.
O conto provoca no leitor um
horror em relação aos negros,
pintados como feras, ao mesmo
tempo em que mostra, pelo
exemplo do capitão, a possibilidade de estar vendo tudo às
avessas, os efeitos no lugar das
causas. A ambiguidade de "Benito Cereno" insinua, por meio
da miragem de um olhar racista,
o ponto cego que o sustenta, a
cegueira diante do outro.
América
Autor: vários
Tradução: Celso M. Paciornik
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 39 (256 págs.)
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