São Paulo, sábado, 07 de julho de 2001

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RESENHA DA SEMANA

Ponto cego

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Apesar da tentativa de explicação no prefácio, não fica totalmente claro o que motivou a seleção dos 11 textos reunidos na coletânea "América -°Clássicos do Conto Norte-Americano", publicada pela Iluminuras, além do fato de serem todos assinados por autores consagrados do século 19 e início do século 20.
Não foi certamente o ineditismo. Não é a primeira vez que "A Fera na Selva", de Henry James, "O Gato Preto", de Edgar Allan Poe, ou "Benito Cereno", de Herman Melville, são publicados no Brasil. "O Bote", de Stephen Crane, aqui traduzido por "O Barco Aberto", e "O Pagão", de Jack London, foram lançados há pouco tempo pela Dantes Editora.
Também não parece ter sido a afinidade temática ou de estilo, mas, antes, como diz a introdução, a diversidade. Os outros autores são: Nathaniel Hawthorne, Mark Twain, Ambrose Bierce, Hamlin Garland, Edith Wharton e Sherwood Anderson.
Este último merece menção especial pelo relativo desconhecimento de sua obra no Brasil, escandaloso a julgar pelo que nela há de excepcional. Anderson (1876-1941) é autor de um dos livros mais importantes da literatura americana do século 20, "Winesburg, Ohio", entre outros volumes de contos, como "O Triunfo do Ovo", de onde vem este "Quero Saber Por Quê".
O conto narra a história de um adolescente maluco por cavalos, no Kentucky do início do século 20. "Eu queria ser um negro", ele confessa de um modo negligente no começo do texto, só para poder trabalhar nas cocheiras e ficar mais perto dos animais.
É um desejo que revela muito da prosa de Anderson, mestre da lógica dos afetos dos que estão à margem, das crianças e dos loucos, que sofrem por sentirem o contrário do lugar-comum. É o que dá uma estranha autenticidade à sua prosa, cujo segredo está sempre no que há de desviante nos indivíduos.
Graças à intensidade de sua paixão pelos cavalos, o adolescente vai descobrir o próprio desejo, a incomunicabilidade e a solidão que ele acarreta. É o que faz dele um indivíduo, a diferença que o leva a agir e sentir como os outros não agem ou sentem. E ele quer saber por quê. Os textos de Anderson não chegam a dar a resposta, mas levam o leitor a ver em experiências solitárias que lhe são estranhas o princípio da sua própria diferença.
"Benito Cereno", o mais longo dos textos da coletânea, também faz uma representação da incomunicabilidade do outro. Só que por meio de uma alegoria do horror. O capitão de um baleeiro americano ao largo do Chile resolve oferecer ajuda a um navio à deriva. Ao chegar a bordo, depara-se com uma situação peculiar. Trata-se de um navio negreiro onde os escravos estão soltos e obedecem as ordens de um debilitado comandante espanhol, Benito Cereno.
O caos da situação é regido por uma ordem surrealista e enigmática que o recém-chegado não consegue interpretar. O medo e o suspense diante da iminência do perigo vão crescendo na cabeça do leitor na mesma proporção da cegueira e da ignorância do capitão do baleeiro, que vê nos negros uma tendência inata a servir e obedecer. Na sua boa-fé (um eufemismo para a sua estupidez), ele não percebe o cerco se fechando à sua volta.
O relato representa a um só tempo a ilusão do homem branco e a perversidade e a selvageria do que escapa à sua compreensão, os negros, sem jamais explicitar a relação de conflito entre os dois, o que estaria por trás de um ato violento de desespero, a própria escravidão. É aí, nesse sintomático ponto cego, que está a pedra de toque da narrativa.
Melville faz o leitor acreditar que está vendo o que o capitão, no seu paternalismo tático ou obtuso, não consegue ver, quando na verdade essa visão é análoga à cegueira dele. Pela metáfora da cegueira do protagonista, crente das regras estabelecidas pela sociedade em que vive, o leitor atento percebe afinal a relatividade e os limites da sua própria visão.
O conto provoca no leitor um horror em relação aos negros, pintados como feras, ao mesmo tempo em que mostra, pelo exemplo do capitão, a possibilidade de estar vendo tudo às avessas, os efeitos no lugar das causas. A ambiguidade de "Benito Cereno" insinua, por meio da miragem de um olhar racista, o ponto cego que o sustenta, a cegueira diante do outro.

América     
Autor: vários
Tradução: Celso M. Paciornik
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 39 (256 págs.)



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