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Em "Exortação aos Crocodilos", o português António Lobo Antunes revisita o salazarismo pela visão de quatro mulheres
Quebra-cabeça da destruição
Capítulo 21
Há dias em que me sinto tão alegre que devo estar em Coimbra,
ao domingo depois da missa,
quando a minha mãe trocava a
roupa nova pela bata e o avental dos
fogões, as empregadas preparavam as
perdizes, os borregos e os cabritos de
que não via o corpo, só reparava nos
olhos parecidos com os das pessoas
crescidas a escutarem um piano ou o
mar, até serem elas próprias o piano e
o mar e eu compreender o som pelo
modo como se sentavam a ouvi-lo, o
meu tio distribuía os garfos mais antigos nas mesas longe da janela, o gato
enrolava-se no peitoril onde a boca
inesperada surgia de um novelo a engordar bocejos, o meu pai esperava
por mim no quintal, atento aos sinos,
com a rede das codornizes na mochila, o meu irmão faleceu à nascença
quando eu tinha três anos e apenas me
lembro dos sinos, ainda hoje o que um
sino me traz à memória é um berço
vazio, ao fim de meses guardaram o
berço no sótão e a clarabóia iluminava
os lençóis sujos, ao aproximar-me para os limpar um rato todo espetado
ameaçou-me do travesseiro, sempre
que os sinos tocavam o meu pai começava por voltar a cabeça para a torre, o
rosto modificava-se, encolhia, regressava ao normal e caminhávamos os
dois na direção dos eucaliptos, ele espiando os ninhos e eu, orgulhosa da
gola de renda e dos sapatos de verniz,
a compor o vestido com o berço na
idéia, tinha a certeza que se movia durante a noite ajudando a adormecer
uma criança defunta, o bosque de eucaliptos afogou-nos de murmúrios
que calaram o sino e o meu irmão, os
arbustos de codornizes surgiram na
balsa, o meu pai ajoelhou para montar
a rede e as costas curvadas, os dedos
que fixavam os caniços, um pedacinho de sabão de barba na bochecha faziam dele uma criatura frágil que me
enternecia, dei conta dos primeiros
cabelos brancos e das vértebras do
pescoço que principiavam a aparecer,
no momento em que varejamos os arbustos as codornizes ergueram-se cedo demais e escaparam à rede, uma
delas, um macho de vigia num tronco,
fitava-nos com a papada a vibrar, devo estar em Coimbra porque alguém
perfuma uma trança molhando-a em
aguardente, um rato ameaça-me do
travesseiro e afinal não é um rato, é o
médico a largar-me o pulso, a regular
o frasco de soro, a perguntar ao meu
marido
- Como quer o senhor que ela viaje
para a Espanha no estado em que está?
o meu pai baixou-se para jogar uma
pedra à codorniz, um segundo bando
passou a gritar no sentido do pântano,
o vento trazia baforadas de sino e apagava-as com a mão, com as baforadas
de sino era o berço que vinha e os seus
lençóis poeirentos, quis ocultar a calvície com a peruca, estendi o braço, a
mesa-de-cabeceira foi-se embora o
médico ao meu marido, os dois tão altos que as cabeças tocavam no teto
- Deve estar com sede coitada dê-lhe água
mudamos a rede para a moita coalhada de sol onde tremiam asas, o barco do moleiro, sem tinta, reduzia-se às
costelas da quilha, um cadáver de lebre
cobria-se de vespas julgando proteger-se a exibir os incisivos, o meu marido
encostou-me o corpo à língua e a água
derramou-se na blusa, o médico protestou
- Devagar
para além das asas que tremiam distinguiam-se gorgolejos, ovos mosqueados, um animal que se dilatava no
choco, uma das codornizes embateu
na rede que tombou, uma outra, desesperada de pressa, sumiu-se a correr
num valado, entrei no quarto depois
de metros e metros de corredor às escuras a esconder os olhos no braço
- Não consigo dormir
a minha mãe com metade do peito
de fora ergueu-se
- O que é isto?
a agrafar a blusa, o meu pai
depressa depressa
procurava o furo do cinto ora apertando demais ora apertando de menos, a minha mãe ajeitava o sutiã fora
do peito
- Não foi nada que eu não estivesse
à espera
noutra ocasião acordei com o pêndulo do relógio a alterar-me um sonho
e ao contrário do que pensava não era
o pêndulo, era a cama deles na parede,
abri a porta
estávamos em fevereiro e as laranjas
amontoavam-se à chuva no quintal
e dei com muitos pés descalços junto
a mim, a cara da minha mãe sobre um
pescoço que não era dela, metade dos
pés encolheram-se e os restantes
transformaram-se no meu pai esquecido das calças do pijama enroladas
nas pernas
- Não tens respeito nenhum pela
menina
o cheiro das rosas bravas no estore,
os borregos do almoço de amanhã
queixavam-se de medo, o meu pai vestiu o pijama no canto sem luz onde a
arca com a roupa do bebê fermentava
alfazema, no local onde a cama batia,
debaixo do crucifixo com a fitinha
azul, havia marcas do verniz da madeira, pareceu-me escutar o berço a gemer molas no sótão, o médico agora
mais nítido contra os vasos do terraço
aconselhava o meu marido a contratar
uma enfermeira
- Se a sua esposa durar uma semana é milagre não lhe sai muito caro
um pássaro pequeno
não a codorniz
um abelheiro ou assim crucificou-se
na rede, o meu pai enfurecido porque
as linhas se esgarçavam desembaraçou-o das malhas, as empregadas faziam a trança da Mamãe Alicia, já instalada no seu trono no andar de cima
visto que o cheiro da aguardente me
impedia de dormir, o meu marido surgiu a contradizer o médico e as silhuetas deles uniram-se no estuque
- Tenha juízo doutor contrato uma
enfermeira e duas horas depois temos
aqui o Exército a prender-nos
homens de bata de oleado degolavam cabritos, o sangue pulava bolhas
zangadas no jarro enquanto o secretário tentava fugir, procurando uma
fresta no muro a mostrar-nos o retrato
da neta como se a neta o salvasse, beijava a medalhinha do pescoço a olhar
para nós, continuou a beijá-la de joelhos depois da terceira rajada, um dos
antigos polícias soltou a medalhinha
do cordão e enterrou-lha na boca para
que a levasse consigo quando o lançassem ao Tejo, mal o sino dobrou escutei, vindo do sótão, um choro de criança, mas talvez fossem os móveis que a
minha mãe acumulava lá em cima e,
nos meses de inverno, se inquietavam
e estalavam pedindo que os arrumassem na sala de onde os haviam expulso, sempre que subia as escadas tentavam libertar-se das mantas que os cobriam e olhavam-me ofendidos, o médico apoiou-me os rins de encontro ao
travesseiro a explicar ao meu marido
- Agitam-se sempre ao entrarem
em coma
a minha avó chamava-se do seu trono enquanto as empregadas desciam
para o térreo com o alguidar de aguardente
- Mimi
falando-me da Galiza onde sob a
chuva as rosas nascem do mar, o médico nunca se sabe se nos percebem
durante o coma, o meu marido fale à
vontade que ela é surda, não podem
deixar-me aqui sozinha porque logo à
noite o chofer no pinhal tem de vestir-me, colocar-me a cabeleira, arrumar-me no banco entre travesseiros e mantas, o secretário quando os militares
espanhóis o algemaram
- Estão a brincar não estão?
esgazeado para o comandante, o senhor bispo, o meu marido, o chofer
que lhe tirava a carteira do bolso e a entregava a um dos antigos polícias,
agendas, papéis, bilhetes, a neta com o
uniforme do colégio, um envelope no
forro do casaco, a tesoura do jardineiro parou, o senhor bispo extraía os
óculos da batina, a viúva do sócio do
meu marido acendia e apagava o isqueiro, o embaixador americano colheu com a unha distraída um grão de
pó do sapato, apanhavam com uma
vara as folhas da piscina, pode falar à
vontade que ela é surda, o comandante
retirou o envelope ao senhor bispo
- Um momento
o isqueiro não cessava de acender e
apagar, o embaixador folheava um álbum com reproduções de quadros antigos, descidas da cruz, milagres, fariseus, o comandante entregou o envelope ao general, não parei de servir
chá, açúcar, leite, água quente, de distribuir colherinhas, se ao menos as xícaras estivessem vazias e toda a gente
me pedisse mais, ao aproximar-me do
secretário o meu marido furtou-me o
bule da mão e lançou-o pela varanda, o
general lia e tornava ao princípio
- Não acredito
um dos antigos polícias mostrou-lhe
qualquer coisa na agenda, o general
devolveu o envelope ao comandante e
apontou uma página da agenda com o
mindinho
- Aqui também
o meu pai guardava a rede das codornizes na copa, as minhas primas
vestidas de domingo, isto é penteadas
e com meias, perseguiam pedreses no
quintal com um alce de felpa a assistir
numa pedra, puxava-se uma guita e
um mecanismo na barriga enrolava a
fita até se calar, o secretário gemeu um
mecanismo na barriga
- Dê-me licença que explique meu
general
enrolou a fita e calou-se também, um
dos meus tios armou um balanço para
nós no ramo da figueira, com uma tábua de caixote e duas cordas, se fechasse os olhos não via a casa nem o berço
no sótão nem a minha mãe a gritar da
janela da cozinha
- Não te sujes Mimi
nem o tratamento do hospital nem a
cabeleira postiça nem a chama do isqueiro nem os cabritos mortos nem o
senhor bispo preocupado com a agenda
- Meu Deus
nem os antigos polícias que erguiam
o secretário a caminho da garagem,
outra vez o mecanismo na barriga
- Dê-me licença que explique meu
general
a fita a enrolar-se, o silêncio, ir buscar o bule no jardim, mesmo quebrado, mesmo inútil, pedir-lhes que o
mandassem embora e servir-lhes chá,
a Celina e eu sem mais ninguém na sala exceto o pêndulo do relógio no vidro, a confusão dos números romanos, problemas de tanques, torneiras,
trens, a estação A e a estação B distam
cem quilômetros uma da outra, se o
trem que parte da estação A viaja a 80
quilômetros por hora e o que parte da
estação B a 70, calcule a que distância
da estação A, a Celina pousou o isqueiro, avançou a poltrona a compor a saia
nos joelhos, pediu-me
- Não fique nesta casa
e eu a sorrir oferecendo-lhe açúcar
como se a não entendesse
- Pois claro
a pensar nos trens, a imaginar os
apeadeiros, os viajantes, a passagem
de nível a deslizar para trás, ainda hoje
sou capaz de jurar não ser a locomotiva que se desloca, é a terra que recua,
nós quietos e os montes a correrem na
janela, meninas que se voltavam para
mim
- Diz à Mimi em que ponto se encontram os trens Edite
uma vozinha míope a erguer-se à
minha frente e a responder numa suficiência adulta, não reparava nas pontes, nas oliveiras, naquele triângulo de
mar entre as dunas que brilhou um
instante apenas e me acompanhou
anos, de cada vez que o médico
- Não vale a pena operar
era nele que pensava para afastar o
medo, quanto tempo leva um barco, a
16 nós, partindo da interseção da linha
do horizonte com a duna da direita, no
caso de o observador se encontrar no
local que forma com os dois primeiros
um ângulo de 27 graus, um angulozinho, um triângulo que se quiser
embora tal fato não possua a menor
relevância para o efeito da resposta
pode povoar de estrelas e sóis e imaginar espremido por colinas com tulipas, dálias, malmequeres, da mesma
forma que suportava o tratamento no
hospital sabendo que um frasco de soro de 500 centímetros cúbicos debita
60 gotas por minuto e sabendo que cada gota contém quatro mililitros de líquido calcule em quanto tempo, da
mesma forma que quando o meu marido chegava tarde à casa pensava a
nossa casa ponto A, vindo da casa do
sócio ponto B, a uma velocidade de 50
quilômetros por hora, considerando
que saiu às três e cinco da madrugada e
que as casas A e B distam 17 quilômetros e 600 metros uma da outra, informe a que horas minutos e segundos,
fazer os cálculos muito depressa antes
que a Edite erguesse os óculos adultos
e o bracinho com o lápis na ponta, as
caras se voltassem para mim, a professora
- Diz à Mimi Edite
a Edite morreu atropelada no último
dia de aulas, depois de receber o ramo
de flores e a faixa encarnada e verde de
melhor estudante por ter esquecido,
pela única vez em 12 anos, que o ônibus das seis partiu da esquina E, onde
ficava o mercado M, descendo a rampa R de inclinação de três por cento
num movimento uniformemente acelerado de 20 centímetros por segundo,
e a foi colher no local L, 93 milímetros
fora do passeio, quando corria a cinco
quilômetros por hora na direção dos
pais com o ramo de flores impedindo-a de visionar, de modo adequado e
conforme as regras elementares da óptica, o veículo V com o peso bruto de
duas toneladas
(muito importante: ter em conta que
o globo ocular é uma simples lente e
como tal sujeita às leis da incidência e
refração e a imagem se forma invertida
no lobo occipital de onde é reenviada
às estruturas nobres do cérebro)
a Edite que não teve tempo de explicar a ninguém, nem sequer ao inspetor
que lhe prometia um futuro ministerial para honra e glória da Escola Pública 26, quantas fraturas de costela
nem quantos centímetros cúbicos de
hemorragia interna sofreu a caminho
do hospital onde chegou cadáver, nem
quantas pessoas no enterro levando
em conta que os parentes mais próximos eram 31 e cada qual possuía quatro amigos íntimos, nem o tempo que
demorou a missa de corpo presente
com um padre debitando em média 14
palavras de latim por minuto, nem
quantas pás de terra, contendo três
quilos e 300 gramas, foram necessárias
a fim de preencher uma campa rasa de
um metro e 80 centímetros de comprimento, 72 centímetros de largo e um
metro e 64 centímetros de profundidade, para um volume total de 59 litros
de caixão incluindo ornatos, crucifixo
de ferro com parafusos engastados,
placa identificadora inoxidável, pegas
de bronze, coberto com a faixa de melhor estudante e o que se conseguiu
salvar de ramo de nardos, alguns deles
um pouco pisados, outros intactos
embora enegrecidos pela lama de
abril, a professora que pesava 47 quilos
(descalça em jejum)
compareceu no cemitério aliviada
dos dois quilos vírgula 666 gramas
(em jejum)
do pequinês que a acompanhava
sempre embora o peso total da sua
roupa, guarda-chuva e livro de orações atingisse os três quilos vírgula 575
gramas o que, na prática, significava
uma diminuição, relativamente desprezível para o trabalho muscular, respiratório, arterial periférico e cardíaco
de 91 gramas, acarretando, de acordo
com as tabelas em vigor, um gasto não
excedendo as 20 calorias vírgula 11, facilmente recuperável com três quintos
de um copo de leite meio gordo, os antigos polícias ergueram o secretário do
banco a caminho da garagem, a Celina
e eu sem mais ninguém na sala exceto
o pêndulo do relógio antigo
que não faço a mínima idéia de
quanto pesa
deslocando os ponteiros no mostrador de letras romanas enfeitadas de
arabescos que não me dei ao trabalho
de converter em números, talvez duas
menos dez, quatro e 20, seis e 27, não
importa, a Celina pousou o isqueiro de
mesa, em forma de lâmpada de Aladim, com a chama a sair pelo bico prometendo um gênio de turbante, braços
cruzados e voz cava com o poder de
conferir três desejos, avançou a poltrona a compor a saia nos joelhos, pediu
- Não fique nesta casa
eu a sorri oferecendo-lhe açúcar como se não entendesse
- Pois claro
a Celina a apontar o jardim, o chão, a
fazer sinais no sentido da estrada, a desenhar um telhado e um losango com
as mãos, a afastá-las de súbito como se
o telhado e o losango se desintegrassem no ar, a apontar de novo o chão, a
fazer mais sinais no sentido da estrada,
a sentar-se num cochicho exausto
- Não fique nesta casa
comigo na minha carteira da escola a
tentar resolver o problema de cinco
bombas de dinamite com sete quilos
cada uma, colocadas numa vivenda de
porão, térreo, primeiro e segundo andar, ou seja quatro pisos de aproximadamente 170 metros quadrados, constituídos por cimento, tijolo, pedra e
madeira, bombas que um comando
manual colocado à distância de 60 metros acionaria a partir de um bosque
de pinheiros onde por acaso não sinto
vento agora nem me parece que haja
cotovia alguma, uma ou duas raposas
no tojo, um ou dois texugos no espaço
compreendido entre os troncos, talvez
uma mulher caminhando com um fardo de lenha para o bairro econômico,
bombas que um comando manual
acionaria obrigando-as a explodir em
simultâneo ou a intervalos não superiores a zero ponto seis segundos, sabendo ainda que no interior da dita vivenda se encontram um general, um
comandante, um bispo, a afilhada do
dito bispo, uma doente de câncer em
estado terminal, desenganada dos médicos com metástases generalizadas e
o peso de 35 quilos correspondente a
pouco mais que o esqueleto, o marido
da referida doente, antigos polícias
afetos ao regime que a revolução derrubou e militares espanhóis afetos ao
regime que a revolução não derrubou
ainda, informe o que destas criaturas
restará a partir do instante da explosão, comigo a tentar resolver o problema e a compreender que não sobrava
nada, de modo que ergui o bracinho
com o lápis na ponta na esperança de
que a professora me designasse do estrado
- Diz à Celina Mimi
e eu num tonzinho de vitória sob a
cabeleira cor de laranja e a pintura que
me disfarça as feridas do pescoço e da
testa, tão alegre que devia estar em
Coimbra, ao domingo, quando a minha mãe trocava a roupa nova pela bata e o avental dos fogões, e os coelhos,
os borregos e os cabritos me fitavam
com olhos de escutarem um piano ou
o mar e eu compreender o som pela
forma como se imobilizavam a ouvi-lo, eu ajeitando a cabeleira sem parar
de sorrir
- É por não restar nada que fico
nesta casa é por não restar absolutamente nada de nós que não me vou
embora.
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