São Paulo, sábado, 07 de julho de 2001

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Em "Exortação aos Crocodilos", o português António Lobo Antunes revisita o salazarismo pela visão de quatro mulheres

Quebra-cabeça da destruição

Capítulo 21

Há dias em que me sinto tão alegre que devo estar em Coimbra, ao domingo depois da missa, quando a minha mãe trocava a roupa nova pela bata e o avental dos fogões, as empregadas preparavam as perdizes, os borregos e os cabritos de que não via o corpo, só reparava nos olhos parecidos com os das pessoas crescidas a escutarem um piano ou o mar, até serem elas próprias o piano e o mar e eu compreender o som pelo modo como se sentavam a ouvi-lo, o meu tio distribuía os garfos mais antigos nas mesas longe da janela, o gato enrolava-se no peitoril onde a boca inesperada surgia de um novelo a engordar bocejos, o meu pai esperava por mim no quintal, atento aos sinos, com a rede das codornizes na mochila, o meu irmão faleceu à nascença quando eu tinha três anos e apenas me lembro dos sinos, ainda hoje o que um sino me traz à memória é um berço vazio, ao fim de meses guardaram o berço no sótão e a clarabóia iluminava os lençóis sujos, ao aproximar-me para os limpar um rato todo espetado ameaçou-me do travesseiro, sempre que os sinos tocavam o meu pai começava por voltar a cabeça para a torre, o rosto modificava-se, encolhia, regressava ao normal e caminhávamos os dois na direção dos eucaliptos, ele espiando os ninhos e eu, orgulhosa da gola de renda e dos sapatos de verniz, a compor o vestido com o berço na idéia, tinha a certeza que se movia durante a noite ajudando a adormecer uma criança defunta, o bosque de eucaliptos afogou-nos de murmúrios que calaram o sino e o meu irmão, os arbustos de codornizes surgiram na balsa, o meu pai ajoelhou para montar a rede e as costas curvadas, os dedos que fixavam os caniços, um pedacinho de sabão de barba na bochecha faziam dele uma criatura frágil que me enternecia, dei conta dos primeiros cabelos brancos e das vértebras do pescoço que principiavam a aparecer, no momento em que varejamos os arbustos as codornizes ergueram-se cedo demais e escaparam à rede, uma delas, um macho de vigia num tronco, fitava-nos com a papada a vibrar, devo estar em Coimbra porque alguém perfuma uma trança molhando-a em aguardente, um rato ameaça-me do travesseiro e afinal não é um rato, é o médico a largar-me o pulso, a regular o frasco de soro, a perguntar ao meu marido
- Como quer o senhor que ela viaje para a Espanha no estado em que está?
o meu pai baixou-se para jogar uma pedra à codorniz, um segundo bando passou a gritar no sentido do pântano, o vento trazia baforadas de sino e apagava-as com a mão, com as baforadas de sino era o berço que vinha e os seus lençóis poeirentos, quis ocultar a calvície com a peruca, estendi o braço, a mesa-de-cabeceira foi-se embora o médico ao meu marido, os dois tão altos que as cabeças tocavam no teto
- Deve estar com sede coitada dê-lhe água
mudamos a rede para a moita coalhada de sol onde tremiam asas, o barco do moleiro, sem tinta, reduzia-se às costelas da quilha, um cadáver de lebre cobria-se de vespas julgando proteger-se a exibir os incisivos, o meu marido encostou-me o corpo à língua e a água derramou-se na blusa, o médico protestou
- Devagar
para além das asas que tremiam distinguiam-se gorgolejos, ovos mosqueados, um animal que se dilatava no choco, uma das codornizes embateu na rede que tombou, uma outra, desesperada de pressa, sumiu-se a correr num valado, entrei no quarto depois de metros e metros de corredor às escuras a esconder os olhos no braço
- Não consigo dormir
a minha mãe com metade do peito de fora ergueu-se
- O que é isto?
a agrafar a blusa, o meu pai
depressa depressa
procurava o furo do cinto ora apertando demais ora apertando de menos, a minha mãe ajeitava o sutiã fora do peito
- Não foi nada que eu não estivesse à espera
noutra ocasião acordei com o pêndulo do relógio a alterar-me um sonho e ao contrário do que pensava não era o pêndulo, era a cama deles na parede, abri a porta
estávamos em fevereiro e as laranjas amontoavam-se à chuva no quintal
e dei com muitos pés descalços junto a mim, a cara da minha mãe sobre um pescoço que não era dela, metade dos pés encolheram-se e os restantes transformaram-se no meu pai esquecido das calças do pijama enroladas nas pernas
- Não tens respeito nenhum pela menina
o cheiro das rosas bravas no estore, os borregos do almoço de amanhã queixavam-se de medo, o meu pai vestiu o pijama no canto sem luz onde a arca com a roupa do bebê fermentava alfazema, no local onde a cama batia, debaixo do crucifixo com a fitinha azul, havia marcas do verniz da madeira, pareceu-me escutar o berço a gemer molas no sótão, o médico agora mais nítido contra os vasos do terraço aconselhava o meu marido a contratar uma enfermeira
- Se a sua esposa durar uma semana é milagre não lhe sai muito caro
um pássaro pequeno
não a codorniz
um abelheiro ou assim crucificou-se na rede, o meu pai enfurecido porque as linhas se esgarçavam desembaraçou-o das malhas, as empregadas faziam a trança da Mamãe Alicia, já instalada no seu trono no andar de cima visto que o cheiro da aguardente me impedia de dormir, o meu marido surgiu a contradizer o médico e as silhuetas deles uniram-se no estuque
- Tenha juízo doutor contrato uma enfermeira e duas horas depois temos aqui o Exército a prender-nos
homens de bata de oleado degolavam cabritos, o sangue pulava bolhas zangadas no jarro enquanto o secretário tentava fugir, procurando uma fresta no muro a mostrar-nos o retrato da neta como se a neta o salvasse, beijava a medalhinha do pescoço a olhar para nós, continuou a beijá-la de joelhos depois da terceira rajada, um dos antigos polícias soltou a medalhinha do cordão e enterrou-lha na boca para que a levasse consigo quando o lançassem ao Tejo, mal o sino dobrou escutei, vindo do sótão, um choro de criança, mas talvez fossem os móveis que a minha mãe acumulava lá em cima e, nos meses de inverno, se inquietavam e estalavam pedindo que os arrumassem na sala de onde os haviam expulso, sempre que subia as escadas tentavam libertar-se das mantas que os cobriam e olhavam-me ofendidos, o médico apoiou-me os rins de encontro ao travesseiro a explicar ao meu marido
- Agitam-se sempre ao entrarem em coma
a minha avó chamava-se do seu trono enquanto as empregadas desciam para o térreo com o alguidar de aguardente
- Mimi
falando-me da Galiza onde sob a chuva as rosas nascem do mar, o médico nunca se sabe se nos percebem durante o coma, o meu marido fale à vontade que ela é surda, não podem deixar-me aqui sozinha porque logo à noite o chofer no pinhal tem de vestir-me, colocar-me a cabeleira, arrumar-me no banco entre travesseiros e mantas, o secretário quando os militares espanhóis o algemaram
- Estão a brincar não estão?
esgazeado para o comandante, o senhor bispo, o meu marido, o chofer que lhe tirava a carteira do bolso e a entregava a um dos antigos polícias, agendas, papéis, bilhetes, a neta com o uniforme do colégio, um envelope no forro do casaco, a tesoura do jardineiro parou, o senhor bispo extraía os óculos da batina, a viúva do sócio do meu marido acendia e apagava o isqueiro, o embaixador americano colheu com a unha distraída um grão de pó do sapato, apanhavam com uma vara as folhas da piscina, pode falar à vontade que ela é surda, o comandante retirou o envelope ao senhor bispo
- Um momento
o isqueiro não cessava de acender e apagar, o embaixador folheava um álbum com reproduções de quadros antigos, descidas da cruz, milagres, fariseus, o comandante entregou o envelope ao general, não parei de servir chá, açúcar, leite, água quente, de distribuir colherinhas, se ao menos as xícaras estivessem vazias e toda a gente me pedisse mais, ao aproximar-me do secretário o meu marido furtou-me o bule da mão e lançou-o pela varanda, o general lia e tornava ao princípio
- Não acredito
um dos antigos polícias mostrou-lhe qualquer coisa na agenda, o general devolveu o envelope ao comandante e apontou uma página da agenda com o mindinho
- Aqui também
o meu pai guardava a rede das codornizes na copa, as minhas primas vestidas de domingo, isto é penteadas e com meias, perseguiam pedreses no quintal com um alce de felpa a assistir numa pedra, puxava-se uma guita e um mecanismo na barriga enrolava a fita até se calar, o secretário gemeu um mecanismo na barriga
- Dê-me licença que explique meu general
enrolou a fita e calou-se também, um dos meus tios armou um balanço para nós no ramo da figueira, com uma tábua de caixote e duas cordas, se fechasse os olhos não via a casa nem o berço no sótão nem a minha mãe a gritar da janela da cozinha
- Não te sujes Mimi
nem o tratamento do hospital nem a cabeleira postiça nem a chama do isqueiro nem os cabritos mortos nem o senhor bispo preocupado com a agenda
- Meu Deus
nem os antigos polícias que erguiam o secretário a caminho da garagem, outra vez o mecanismo na barriga
- Dê-me licença que explique meu general
a fita a enrolar-se, o silêncio, ir buscar o bule no jardim, mesmo quebrado, mesmo inútil, pedir-lhes que o mandassem embora e servir-lhes chá, a Celina e eu sem mais ninguém na sala exceto o pêndulo do relógio no vidro, a confusão dos números romanos, problemas de tanques, torneiras, trens, a estação A e a estação B distam cem quilômetros uma da outra, se o trem que parte da estação A viaja a 80 quilômetros por hora e o que parte da estação B a 70, calcule a que distância da estação A, a Celina pousou o isqueiro, avançou a poltrona a compor a saia nos joelhos, pediu-me
- Não fique nesta casa
e eu a sorrir oferecendo-lhe açúcar como se a não entendesse
- Pois claro
a pensar nos trens, a imaginar os apeadeiros, os viajantes, a passagem de nível a deslizar para trás, ainda hoje sou capaz de jurar não ser a locomotiva que se desloca, é a terra que recua, nós quietos e os montes a correrem na janela, meninas que se voltavam para mim
- Diz à Mimi em que ponto se encontram os trens Edite
uma vozinha míope a erguer-se à minha frente e a responder numa suficiência adulta, não reparava nas pontes, nas oliveiras, naquele triângulo de mar entre as dunas que brilhou um instante apenas e me acompanhou anos, de cada vez que o médico
- Não vale a pena operar
era nele que pensava para afastar o medo, quanto tempo leva um barco, a 16 nós, partindo da interseção da linha do horizonte com a duna da direita, no caso de o observador se encontrar no local que forma com os dois primeiros um ângulo de 27 graus, um angulozinho, um triângulo que se quiser
embora tal fato não possua a menor relevância para o efeito da resposta
pode povoar de estrelas e sóis e imaginar espremido por colinas com tulipas, dálias, malmequeres, da mesma forma que suportava o tratamento no hospital sabendo que um frasco de soro de 500 centímetros cúbicos debita 60 gotas por minuto e sabendo que cada gota contém quatro mililitros de líquido calcule em quanto tempo, da mesma forma que quando o meu marido chegava tarde à casa pensava a nossa casa ponto A, vindo da casa do sócio ponto B, a uma velocidade de 50 quilômetros por hora, considerando que saiu às três e cinco da madrugada e que as casas A e B distam 17 quilômetros e 600 metros uma da outra, informe a que horas minutos e segundos, fazer os cálculos muito depressa antes que a Edite erguesse os óculos adultos e o bracinho com o lápis na ponta, as caras se voltassem para mim, a professora
- Diz à Mimi Edite
a Edite morreu atropelada no último dia de aulas, depois de receber o ramo de flores e a faixa encarnada e verde de melhor estudante por ter esquecido, pela única vez em 12 anos, que o ônibus das seis partiu da esquina E, onde ficava o mercado M, descendo a rampa R de inclinação de três por cento num movimento uniformemente acelerado de 20 centímetros por segundo, e a foi colher no local L, 93 milímetros fora do passeio, quando corria a cinco quilômetros por hora na direção dos pais com o ramo de flores impedindo-a de visionar, de modo adequado e conforme as regras elementares da óptica, o veículo V com o peso bruto de duas toneladas
(muito importante: ter em conta que o globo ocular é uma simples lente e como tal sujeita às leis da incidência e refração e a imagem se forma invertida no lobo occipital de onde é reenviada às estruturas nobres do cérebro)
a Edite que não teve tempo de explicar a ninguém, nem sequer ao inspetor que lhe prometia um futuro ministerial para honra e glória da Escola Pública 26, quantas fraturas de costela nem quantos centímetros cúbicos de hemorragia interna sofreu a caminho do hospital onde chegou cadáver, nem quantas pessoas no enterro levando em conta que os parentes mais próximos eram 31 e cada qual possuía quatro amigos íntimos, nem o tempo que demorou a missa de corpo presente com um padre debitando em média 14 palavras de latim por minuto, nem quantas pás de terra, contendo três quilos e 300 gramas, foram necessárias a fim de preencher uma campa rasa de um metro e 80 centímetros de comprimento, 72 centímetros de largo e um metro e 64 centímetros de profundidade, para um volume total de 59 litros de caixão incluindo ornatos, crucifixo de ferro com parafusos engastados, placa identificadora inoxidável, pegas de bronze, coberto com a faixa de melhor estudante e o que se conseguiu salvar de ramo de nardos, alguns deles um pouco pisados, outros intactos embora enegrecidos pela lama de abril, a professora que pesava 47 quilos
(descalça em jejum)
compareceu no cemitério aliviada dos dois quilos vírgula 666 gramas
(em jejum)
do pequinês que a acompanhava sempre embora o peso total da sua roupa, guarda-chuva e livro de orações atingisse os três quilos vírgula 575 gramas o que, na prática, significava uma diminuição, relativamente desprezível para o trabalho muscular, respiratório, arterial periférico e cardíaco de 91 gramas, acarretando, de acordo com as tabelas em vigor, um gasto não excedendo as 20 calorias vírgula 11, facilmente recuperável com três quintos de um copo de leite meio gordo, os antigos polícias ergueram o secretário do banco a caminho da garagem, a Celina e eu sem mais ninguém na sala exceto o pêndulo do relógio antigo
que não faço a mínima idéia de quanto pesa
deslocando os ponteiros no mostrador de letras romanas enfeitadas de arabescos que não me dei ao trabalho de converter em números, talvez duas menos dez, quatro e 20, seis e 27, não importa, a Celina pousou o isqueiro de mesa, em forma de lâmpada de Aladim, com a chama a sair pelo bico prometendo um gênio de turbante, braços cruzados e voz cava com o poder de conferir três desejos, avançou a poltrona a compor a saia nos joelhos, pediu
- Não fique nesta casa
eu a sorri oferecendo-lhe açúcar como se não entendesse
- Pois claro
a Celina a apontar o jardim, o chão, a fazer sinais no sentido da estrada, a desenhar um telhado e um losango com as mãos, a afastá-las de súbito como se o telhado e o losango se desintegrassem no ar, a apontar de novo o chão, a fazer mais sinais no sentido da estrada, a sentar-se num cochicho exausto
- Não fique nesta casa
comigo na minha carteira da escola a tentar resolver o problema de cinco bombas de dinamite com sete quilos cada uma, colocadas numa vivenda de porão, térreo, primeiro e segundo andar, ou seja quatro pisos de aproximadamente 170 metros quadrados, constituídos por cimento, tijolo, pedra e madeira, bombas que um comando manual colocado à distância de 60 metros acionaria a partir de um bosque de pinheiros onde por acaso não sinto vento agora nem me parece que haja cotovia alguma, uma ou duas raposas no tojo, um ou dois texugos no espaço compreendido entre os troncos, talvez uma mulher caminhando com um fardo de lenha para o bairro econômico, bombas que um comando manual acionaria obrigando-as a explodir em simultâneo ou a intervalos não superiores a zero ponto seis segundos, sabendo ainda que no interior da dita vivenda se encontram um general, um comandante, um bispo, a afilhada do dito bispo, uma doente de câncer em estado terminal, desenganada dos médicos com metástases generalizadas e o peso de 35 quilos correspondente a pouco mais que o esqueleto, o marido da referida doente, antigos polícias afetos ao regime que a revolução derrubou e militares espanhóis afetos ao regime que a revolução não derrubou ainda, informe o que destas criaturas restará a partir do instante da explosão, comigo a tentar resolver o problema e a compreender que não sobrava nada, de modo que ergui o bracinho com o lápis na ponta na esperança de que a professora me designasse do estrado
- Diz à Celina Mimi
e eu num tonzinho de vitória sob a cabeleira cor de laranja e a pintura que me disfarça as feridas do pescoço e da testa, tão alegre que devia estar em Coimbra, ao domingo, quando a minha mãe trocava a roupa nova pela bata e o avental dos fogões, e os coelhos, os borregos e os cabritos me fitavam com olhos de escutarem um piano ou o mar e eu compreender o som pela forma como se imobilizavam a ouvi-lo, eu ajeitando a cabeleira sem parar de sorrir
- É por não restar nada que fico nesta casa é por não restar absolutamente nada de nós que não me vou embora.



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