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Autor compõe mosaico de vozes caladas
COLUNISTA DA FOLHA
Os últimos livros do português António Lobo Antunes,
59, são romances de mão dupla.
Não basta serem lidos até o final.
Mesmo depois de juntar todas as
peças desses imensos quebra-cabeças, ao leitor ainda ficará a impressão de ter deixado alguma
coisa pelo caminho e a vontade de
refazê-lo de trás para a frente em
busca do segredo perdido.
Lobo Antunes alcançou em
"Exortação aos Crocodilos" e no
anterior "O Esplendor de Portugal", também publicado no Brasil
pela Rocco, a excelência de uma
forma em que o sentido não é dado de imediato, mas conquistado
aos poucos, a conta-gotas, nas interseções das diferentes vozes que
se alternam e se interrompem na
narração dos capítulos. Uma forma ainda mais radicalizada no
seu último livro publicado em
Portugal, "Não Entres tão Depressa nessa Noite Escura", romance
de mais de 500 páginas definido
pelo autor como "poema".
Os romances de Lobo Antunes
são fragmentários, formados não
apenas pelas diversas vozes que
compõem um mosaico polifônico, mas por frases e parágrafos interrompidos e entrecortados,
produzindo uma multiplicidade
de perspectivas e dando a impressão de que a verdade só pode ser
atingida por investidas abortadas
e sentenças abandonadas no
meio, num jogo simultâneo de revelação e ocultamento.
Ao entreabrir várias portas,
com cada capítulo tomando o
ponto de vista de um personagem, numa sequência que passa a
se repetir em progressão musical
e que vai lentamente dando forma
a uma cena geral de início ainda
muito difusa, essa prosa dá uma
complexidade assombrosa ao
mundo que narra, como se em
vez de criá-lo, ela estivesse ali para
encobrir a sua realidade infinita e
de possibilidades inesgotáveis.
Lobo Antunes serviu como médico nas guerras coloniais portuguesas, em Angola. É psiquiatra
de formação, e sua prosa parece
mimetizar um estado ambivalente da memória e da consciência,
em que não se sabe mais o que é
passado e o que é presente, o que é
realidade e o que é imaginação,
uma simultaneidade de tempos
interrompidos que ao final também já não permite distinguir se a
imagem do conjunto é resultado
de uma revelação ou de uma
construção.
É possível reconhecer nisso algo
dos grandes romances de William
Faulkner, mas que aqui serve à representação de um universo muito específico, uma pátria marcada
pelo ressentimento, onde impera
o não-dito e a hipocrisia, onde as
coisas mais terríveis acabam sendo reveladas à boca pequena ou
pelas costas.
"Exortação aos Crocodilos" é
contado por quatro mulheres, figuras caladas (uma delas é surda),
à sombra dos maridos e amantes,
um grupo de salazaristas inconformados, fantasmas da extrema
direita que passam a vida a planejar atos terroristas na esperança
de derrubar a democracia e restabelecer um estado de exceção, que
os privilegiava.
Da pequena organização clandestina participam um general,
um dono de hotéis e seu motorista, um comandante da marinha e
um bispo. As quatro narradoras
são: a viúva do sócio assassinado
do dono de hotéis, a mulher surda
do dono de hotéis, a "afilhada" (e
amante) do bispo e a namorada
obesa do motorista encarregado
da confecção das bombas.
Todas têm motivos de sobra para destruir seus homens e todas, a
exemplo deles, agem nas sombras, às surdas. Fiéis à educação
que receberam e seguindo as regras dessa sociedade hipócrita,
sempre estiveram prontas para
enterrar os próprios podres às escondidas. Todas podem assumir
o papel de algozes dos torturadores a quem servem submissas.
E boa parte do suspense da narrativa, feita não por acaso de estilhaços, vem da dúvida de como
esse grupo acabará se destruindo.
Também não é por acaso que um
dos refrões do romance seja a frase "Não digas nada", que uma delas repete sempre que necessário.
Portugal é um país pequeno,
onde as polaridades ganham muita evidência, e desde que José Saramago recebeu o Nobel em 1998,
a Lobo Antunes foi reservado o
lugar de quem havia perdido o
páreo. A mídia nunca deixou de
explorar a rivalidade entre os dois
e o que nela há de caricatural. Nada disso tem a ver com os livros.
"Exortação aos Crocodilos" é
um romance excepcional. Um
desses livros que se tem vontade
de nunca ter lido, só para poder
lê-lo de novo, pela primeira vez.
(BERNARDO CARVALHO)
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