São Paulo, sábado, 07 de julho de 2001

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Autor compõe mosaico de vozes caladas

COLUNISTA DA FOLHA

Os últimos livros do português António Lobo Antunes, 59, são romances de mão dupla. Não basta serem lidos até o final. Mesmo depois de juntar todas as peças desses imensos quebra-cabeças, ao leitor ainda ficará a impressão de ter deixado alguma coisa pelo caminho e a vontade de refazê-lo de trás para a frente em busca do segredo perdido.
Lobo Antunes alcançou em "Exortação aos Crocodilos" e no anterior "O Esplendor de Portugal", também publicado no Brasil pela Rocco, a excelência de uma forma em que o sentido não é dado de imediato, mas conquistado aos poucos, a conta-gotas, nas interseções das diferentes vozes que se alternam e se interrompem na narração dos capítulos. Uma forma ainda mais radicalizada no seu último livro publicado em Portugal, "Não Entres tão Depressa nessa Noite Escura", romance de mais de 500 páginas definido pelo autor como "poema".
Os romances de Lobo Antunes são fragmentários, formados não apenas pelas diversas vozes que compõem um mosaico polifônico, mas por frases e parágrafos interrompidos e entrecortados, produzindo uma multiplicidade de perspectivas e dando a impressão de que a verdade só pode ser atingida por investidas abortadas e sentenças abandonadas no meio, num jogo simultâneo de revelação e ocultamento.
Ao entreabrir várias portas, com cada capítulo tomando o ponto de vista de um personagem, numa sequência que passa a se repetir em progressão musical e que vai lentamente dando forma a uma cena geral de início ainda muito difusa, essa prosa dá uma complexidade assombrosa ao mundo que narra, como se em vez de criá-lo, ela estivesse ali para encobrir a sua realidade infinita e de possibilidades inesgotáveis.
Lobo Antunes serviu como médico nas guerras coloniais portuguesas, em Angola. É psiquiatra de formação, e sua prosa parece mimetizar um estado ambivalente da memória e da consciência, em que não se sabe mais o que é passado e o que é presente, o que é realidade e o que é imaginação, uma simultaneidade de tempos interrompidos que ao final também já não permite distinguir se a imagem do conjunto é resultado de uma revelação ou de uma construção.
É possível reconhecer nisso algo dos grandes romances de William Faulkner, mas que aqui serve à representação de um universo muito específico, uma pátria marcada pelo ressentimento, onde impera o não-dito e a hipocrisia, onde as coisas mais terríveis acabam sendo reveladas à boca pequena ou pelas costas.
"Exortação aos Crocodilos" é contado por quatro mulheres, figuras caladas (uma delas é surda), à sombra dos maridos e amantes, um grupo de salazaristas inconformados, fantasmas da extrema direita que passam a vida a planejar atos terroristas na esperança de derrubar a democracia e restabelecer um estado de exceção, que os privilegiava.
Da pequena organização clandestina participam um general, um dono de hotéis e seu motorista, um comandante da marinha e um bispo. As quatro narradoras são: a viúva do sócio assassinado do dono de hotéis, a mulher surda do dono de hotéis, a "afilhada" (e amante) do bispo e a namorada obesa do motorista encarregado da confecção das bombas.
Todas têm motivos de sobra para destruir seus homens e todas, a exemplo deles, agem nas sombras, às surdas. Fiéis à educação que receberam e seguindo as regras dessa sociedade hipócrita, sempre estiveram prontas para enterrar os próprios podres às escondidas. Todas podem assumir o papel de algozes dos torturadores a quem servem submissas.
E boa parte do suspense da narrativa, feita não por acaso de estilhaços, vem da dúvida de como esse grupo acabará se destruindo. Também não é por acaso que um dos refrões do romance seja a frase "Não digas nada", que uma delas repete sempre que necessário.
Portugal é um país pequeno, onde as polaridades ganham muita evidência, e desde que José Saramago recebeu o Nobel em 1998, a Lobo Antunes foi reservado o lugar de quem havia perdido o páreo. A mídia nunca deixou de explorar a rivalidade entre os dois e o que nela há de caricatural. Nada disso tem a ver com os livros.
"Exortação aos Crocodilos" é um romance excepcional. Um desses livros que se tem vontade de nunca ter lido, só para poder lê-lo de novo, pela primeira vez.
(BERNARDO CARVALHO)



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