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São Paulo, segunda-feira, 07 de julho de 2003

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INDÚSTRIA CULTURAL

Maquinaria das megaproduções descartáveis é a antítese da trajetória da série de J.K. Rowling

De boca em boca, Harry Potter derrota Hulk

FRANK RICH
DO "NEW YORK TIMES"

Isso é o que há de errado com as crianças da era digital. Elas vivem em frente da televisão e das telas de seus computadores. Roubam música online. Não conseguem prestar atenção em nada. Vivem em regime multitarefa e a única coisa em que se concentram são os videogames. Compram qualquer porcaria que os gigantes da mídia decidam lhes empurrar e a abandonam assim que surge o próximo grande engodo.
Essa é apenas uma lista curta das suposições mais fortes que foram desmanteladas pela publicação de "Harry Potter e a Ordem da Fênix". No sábado, dia 21 de junho, apenas, o quinto romance de J.K. Rowling vendeu cinco milhões de cópias nos EUA.
Em uma cultura em que pouca coisa ganha importância sem passar primeiro pela caixa registradora, faça as contas. Se calcularmos um preço médio de US$ 20 por livro, a bilheteria do dia chega a US$ 100 milhões.
É mais dinheiro do que a fantasia concorrente oferecida por Hollywood, "Hulk", faturou em todo o seu final de semana de estréia e, presumindo a média bastante conservadora de dois leitores por livro, Harry Potter atingiu também uma audiência maior.
Já se disse muito sobre como a série Harry Potter, em menos de cinco anos, fez com que as crianças, meninos incluídos, voltassem a ler. Mas o fenômeno envolve mais que a alfabetização infantil.
A fome insaciável pelos romances de Rowling demonstra que as crianças na verdade são muito mais capazes de escolher do que os adultos acreditam, em especial os adultos encarregados de vender produtos de entretenimento.
As crianças fascinadas por Potter não precisam de cortes cinematográficos frenéticos para renovar-lhes a atenção. Estão perfeitamente satisfeitas em se concentrar em uma narrativa prolongada que, em "A Ordem da Fênix", atinge proporções dignas de Dickens, com 870 páginas.
Esses jovens compradores começaram a ler seus livros assim que conseguiram adquiri-los, na madrugada do sábado -o que talvez explique por que as vendas de ingressos para "Hulk" tenham de fato caído no final de semana passado. (Outra explicação provável: o filme mesmo.)
Acima de tudo, a popularidade da série é prova de que os mais jovens reconhecem qualidade quando a vêem. Eles perceberam o talento de Rowling desde o começo. É preciso lembrar que a mania de Potter não foi fabricada por um conglomerado de mídia.
Sua primeira editora na Inglaterra, a Bloomsbury, é uma empresa independente, e o mesmo vale para a Scholastic, que prescientemente adquiriu os direitos norte-americanos do projeto.
O sucesso do livro borbulhou espontaneamente de baixo para cima, propelido pela propaganda de boca em boca das crianças, em vez de ser imposto por um esquema promocional avassalador.
No começo, os adultos não sacavam o que estava acontecendo. O "New York Times" só resenhou o primeiro livro cinco meses depois de sua publicação, quando "A Pedra Filosofal" já estava na lista de mais vendidos do jornal havia 14 semanas, bem acima do recorde de três semanas para os livros juvenis, de "A Teia de Charlotte", de E.B. White (1952).
O orçamento de promoção da Scholastic para o novo Harry Potter chegou aos US$ 3,5 milhões -provavelmente apenas um décimo do que a Universal gastou divulgando "Hulk".
Enquanto você lê este artigo, "Hulk", assim como outros sucessos que o antecederam, provavelmente estará perdendo a força nas bilheterias, o primeiro passo do filme rumo ao esquecimento.
Vivemos em uma cultura de entretenimento de alto orçamento na qual os maiores filmes de Hollywood, a maior parte dos quais direcionados a adolescentes, saturam o mercado por uma ou duas semanas e desaparecem.
Não há tempo para que a propaganda de boca em boca permita que um trabalho com algo de especial mas não instantaneamente vendável encontre audiência de massa, e, assim, por que os estúdios correriam esse risco? É mais fácil produzir em série as fórmulas comprovadas e as franquias, mais estúpidas a cada título novo.
A maquinaria que gera esses filmes descartáveis é a antítese da trajetória de carreira da série Harry Potter. O primeiro romance continua entre os dez mais vendidos na lista do "New York Times" 178 semanas depois do lançamento, e muito depois que o filme nele baseado saiu de cartaz.
No novo romance, Harry está com 15 anos. Os leitores que começaram a acompanhá-lo cinco anos atrás também cresceram. Esses alunos de segundo grau são a um só tempo os mais procurados e os mais desprezados consumidores pelo show business atual.
Procurados porque são uma faixa etária que tem renda disponível e apetite incessante por todas as formas de entretenimento. E desprezados porque são responsáveis por roubo em larga escala de produtos industriais. As dificuldades da indústria da música são atribuídas ao Napster, que surgiu mais ou menos ao mesmo tempo que o primeiro romance da série Harry Potter, e aos seus sucessores atuais.
A indústria fonográfica tentou usar a Justiça, impor novas leis, realizar campanhas educativas e xingar os infratores para pôr fim à pirataria via troca de arquivos, mas não obteve grande resultado.
A indústria do cinema é a próxima. Sem banda larga, demora para que a garotada baixe filmes, mas isso não impediu que muitos deles difundissem uma cópia pirata de "Hulk" na internet duas semanas antes da estréia do filme.
Agora que a queima de DVDs se une à queima de CDs como recurso padrão nos computadores domésticos, veremos cópias ilimitadas de filmes em DVD, já que o código de proteção desses produtos é fácil de decifrar.
A questão é: como essa garotada que adora entretenimento e se criou com Harry Potter cresce e adere ao roubo? Certamente eles sabem que roubar canções protegidas por direitos autorais equivale a roubar roupas na Gap. Não há uma explicação simples, claro, nem racionalização aceitável que desculpe o roubo. Mas não é segredo que a pirataria de música disparou quando os preços dos CDs subiram, e os adolescentes se enraiveceram diante da perspectiva de pagar o mesmo preço por uma edição capa dura de Harry Potter e um CD com 12 canções, dez das quais não interessam.


Tradução Paulo Migliacci


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