|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
INDÚSTRIA CULTURAL
Maquinaria das megaproduções descartáveis é a antítese da trajetória da série de J.K. Rowling
De boca em boca, Harry Potter derrota Hulk
FRANK RICH
DO "NEW YORK TIMES"
Isso é o que há de errado com as
crianças da era digital. Elas vivem
em frente da televisão e das telas
de seus computadores. Roubam
música online. Não conseguem
prestar atenção em nada. Vivem
em regime multitarefa e a única
coisa em que se concentram são
os videogames. Compram qualquer porcaria que os gigantes da
mídia decidam lhes empurrar e a
abandonam assim que surge o
próximo grande engodo.
Essa é apenas uma lista curta
das suposições mais fortes que foram desmanteladas pela publicação de "Harry Potter e a Ordem
da Fênix". No sábado, dia 21 de junho, apenas, o quinto romance de
J.K. Rowling vendeu cinco milhões de cópias nos EUA.
Em uma cultura em que pouca
coisa ganha importância sem passar primeiro pela caixa registradora, faça as contas. Se calcularmos um preço médio de US$ 20
por livro, a bilheteria do dia chega
a US$ 100 milhões.
É mais dinheiro do que a fantasia concorrente oferecida por
Hollywood, "Hulk", faturou em
todo o seu final de semana de estréia e, presumindo a média bastante conservadora de dois leitores por livro, Harry Potter atingiu
também uma audiência maior.
Já se disse muito sobre como a
série Harry Potter, em menos de
cinco anos, fez com que as crianças, meninos incluídos, voltassem
a ler. Mas o fenômeno envolve
mais que a alfabetização infantil.
A fome insaciável pelos romances de Rowling demonstra que as
crianças na verdade são muito
mais capazes de escolher do que
os adultos acreditam, em especial
os adultos encarregados de vender produtos de entretenimento.
As crianças fascinadas por Potter não precisam de cortes cinematográficos frenéticos para renovar-lhes a atenção. Estão perfeitamente satisfeitas em se concentrar em uma narrativa prolongada que, em "A Ordem da Fênix", atinge proporções dignas de
Dickens, com 870 páginas.
Esses jovens compradores começaram a ler seus livros assim
que conseguiram adquiri-los, na
madrugada do sábado -o que
talvez explique por que as vendas
de ingressos para "Hulk" tenham
de fato caído no final de semana
passado. (Outra explicação provável: o filme mesmo.)
Acima de tudo, a popularidade
da série é prova de que os mais jovens reconhecem qualidade
quando a vêem. Eles perceberam
o talento de Rowling desde o começo. É preciso lembrar que a
mania de Potter não foi fabricada
por um conglomerado de mídia.
Sua primeira editora na Inglaterra, a Bloomsbury, é uma empresa independente, e o mesmo
vale para a Scholastic, que prescientemente adquiriu os direitos
norte-americanos do projeto.
O sucesso do livro borbulhou
espontaneamente de baixo para
cima, propelido pela propaganda
de boca em boca das crianças, em
vez de ser imposto por um esquema promocional avassalador.
No começo, os adultos não sacavam o que estava acontecendo.
O "New York Times" só resenhou
o primeiro livro cinco meses depois de sua publicação, quando
"A Pedra Filosofal" já estava na
lista de mais vendidos do jornal
havia 14 semanas, bem acima do
recorde de três semanas para os livros juvenis, de "A Teia de Charlotte", de E.B. White (1952).
O orçamento de promoção da
Scholastic para o novo Harry Potter chegou aos US$ 3,5 milhões
-provavelmente apenas um décimo do que a Universal gastou
divulgando "Hulk".
Enquanto você lê este artigo,
"Hulk", assim como outros sucessos que o antecederam, provavelmente estará perdendo a força
nas bilheterias, o primeiro passo
do filme rumo ao esquecimento.
Vivemos em uma cultura de entretenimento de alto orçamento
na qual os maiores filmes de
Hollywood, a maior parte dos
quais direcionados a adolescentes, saturam o mercado por uma
ou duas semanas e desaparecem.
Não há tempo para que a propaganda de boca em boca permita
que um trabalho com algo de especial mas não instantaneamente
vendável encontre audiência de
massa, e, assim, por que os estúdios correriam esse risco? É mais
fácil produzir em série as fórmulas comprovadas e as franquias,
mais estúpidas a cada título novo.
A maquinaria que gera esses filmes descartáveis é a antítese da
trajetória de carreira da série
Harry Potter. O primeiro romance continua entre os dez mais vendidos na lista do "New York Times" 178 semanas depois do lançamento, e muito depois que o filme nele baseado saiu de cartaz.
No novo romance, Harry está
com 15 anos. Os leitores que começaram a acompanhá-lo cinco
anos atrás também cresceram. Esses alunos de segundo grau são a
um só tempo os mais procurados
e os mais desprezados consumidores pelo show business atual.
Procurados porque são uma faixa etária que tem renda disponível e apetite incessante por todas
as formas de entretenimento. E
desprezados porque são responsáveis por roubo em larga escala
de produtos industriais. As dificuldades da indústria da música
são atribuídas ao Napster, que
surgiu mais ou menos ao mesmo
tempo que o primeiro romance
da série Harry Potter, e aos seus
sucessores atuais.
A indústria fonográfica tentou
usar a Justiça, impor novas leis,
realizar campanhas educativas e
xingar os infratores para pôr fim à
pirataria via troca de arquivos,
mas não obteve grande resultado.
A indústria do cinema é a próxima. Sem banda larga, demora para que a garotada baixe filmes,
mas isso não impediu que muitos
deles difundissem uma cópia pirata de "Hulk" na internet duas
semanas antes da estréia do filme.
Agora que a queima de DVDs se
une à queima de CDs como recurso padrão nos computadores domésticos, veremos cópias ilimitadas de filmes em DVD, já que o
código de proteção desses produtos é fácil de decifrar.
A questão é: como essa garotada
que adora entretenimento e se
criou com Harry Potter cresce e
adere ao roubo? Certamente eles
sabem que roubar canções protegidas por direitos autorais equivale a roubar roupas na Gap. Não há
uma explicação simples, claro,
nem racionalização aceitável que
desculpe o roubo. Mas não é segredo que a pirataria de música
disparou quando os preços dos
CDs subiram, e os adolescentes se
enraiveceram diante da perspectiva de pagar o mesmo preço por
uma edição capa dura de Harry
Potter e um CD com 12 canções,
dez das quais não interessam.
Tradução Paulo Migliacci
Texto Anterior: Dança: "O Lago dos Cisnes" esbanja tradição e sotaque russo Próximo Texto: Musical: Versão de "Senhor dos Anéis" será a mais cara já feita Índice
|