|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARCELO COELHO
Concisão e delírio
Deus? "Um dia/ foi uma casa de marimbondos na chuva/ que eu chamei assim no hospital/ onde sentia o sofrimento dos
outros/ e a paciência casual dos
insetos/ que lutavam para construir contra a água."
O poema continua: "E é ainda a
palavra deus que atribuo/ aos instintos mais belos, sob a chuva,/
notando que no chão de passagem/ já brotou e feneceu várias
vezes o que eu chamo de alma/ e é
talvez a calma/ na química de
meus desejos/ de oferecer alguma
coisa".
Oferecer coisas -em geral os
próprios livros- é hábito dos
poetas.
Recebi de Sérgio Cohn, editor
da "Azougue", um belo livro de
capa dura comemorando os dez
anos dessa revista. São 400 e tantas páginas, reunindo entrevistas,
depoimentos e trechos da obra de
muitos poetas e de alguns prosadores. A coletânea vai de Afonso
Henriques Neto e Campos de Carvalho a Rubens Rodrigues Torres
e Vicente Cecim, passando por
Hilda Hilst, Jorge Mautner, Roberto Piva e Leonardo Fróes, cujos versos estava citando acima.
O que têm todos esses escritores
em comum? O crítico Bruno Zeni,
que participou dos começos da revista em meados da década passada, diz que o grupo dos "azougueiros" procurava "conhecer,
encontrar e recuperar, tudo ao
mesmo tempo, a obra de alguns
poetas que estavam esquecidos e
marginalizados", descobrindo
que "havia poesia para além de
Drummond, Bandeira, João Cabral e dos concretos".
Mais Rimbaud que Mallarmé,
mais Jorge de Lima do que João
Cabral, mais Allen Ginsberg e os
beatniks que Ezra Pound e os provençais. Numa palavra, para os
criadores de "Azougue", em 1994,
parecia interessar tudo o que se
afastasse do concretismo. O pêndulo das preferências literárias
refazia seu caminho: a geração
que, por volta de 1980, tomara os
irmãos Campos e Décio Pignatari
como mestres era, na década seguinte, substituída por um grupo
mais jovem, em busca de modelos
de outro tipo.
Tornavam-se cansativos os valores da precisão técnica, da metalinguagem, da concisão e do
"rigor". Aliás, os críticos falam
tanto de "rigor" que, se dependesse deles, a melhor poesia brasileira estaria guardada no Instituto
Médico Legal. Voltou-se então a
falar, como nos anos 60, de transgressão, delírio, mistério e êxtase.
Reduzir tudo a uma rixa entre
escolas -ou à reedição das rixas
de uma geração anterior- seria
ver o lado mais desinteressante
da coisa. Há chatices de todos os
lados; tanto os "rigorosos" quanto
os "delirantes" cedem à tentação
da autopropaganda, da poesia
programática, da poesia que mais
assinala as próprias intenções do
que as alcança realmente. O tom
declamatório e verborrágico contamina alguns dos depoimentos e
poemas de Azougue/dez anos; e
invocações ao éter infinito do
caos não têm necessariamente
mais conteúdo do que o pobre pisca-pisca digital de um poema
concreto.
É possível até identificar o que
as duas correntes têm em comum.
O concretismo buscava aproximar a poesia das artes visuais,
combatendo o que houvesse de
discursivo e frouxo no verso,
apostando numa concisão que,
em última análise, tenderia à comunicação instantânea, imediata. Buscava-se a visão simultânea, mais que sucessão temporal.
Neo-surrealistas, desbragados e
delirantes contrapunham à objetividade visual e finita dos concretos um discurso subjetivo, torrencial, interminável. Sob a aparente oposição, tratava-se, creio,
de um mesmo problema.
É que o delírio, as imagens do
inconsciente etc., também desconhecem a ordem de sucessão temporal, a narrativa e a ordenação
sintática. Delira-se sempre "no
presente". Como no caso da poesia visual, é a simultaneidade, a
coexistência de visões no espaço, o
que se impõe ao poeta desvairante. É por isso que um dos primeiros sintomas do êxtase dionisíaco,
nesses casos, costuma ser o abuso
do gerúndio; o tempo presente se
prolonga num longo uivo celebratório, do mesmo modo que os verbos costumam ser as primeiras vítimas da cirurgia concretista, que
soletrará -também feliz, por que
não?- seus puros e sólidos monossílabos.
Claro que, modernamente, a
função de narrar acontecimentos
está a cargo da prosa, e não da
poesia. E é claro que, se a poesia
lírica não está interessada em
contar histórias, tornam-se complexas as suas relações com a sucessão temporal. Há algo como a
busca de um "instante poético",
de um "tempo presente" que podemos encontrar tanto nos poemas brevíssimos de Ungaretti e
Bandeira quanto nos mais extensos de Valéry e de Drummond.
E que podemos encontrar também em muitos dos poemas recolhidos neste Azougue-dez anos.
Penso em Hilda Hilst, dizendo a
um morto: "sobrevivi à morte sucessiva das coisas do teu quarto".
E que lhe pede, no fim do poema:
"Abraça-me. Um quase nada de
luz pousou na tua mesa/ E expandiu-se na cor, como um pequeno
prisma". Ou em Roberto Piva celebrando as "fontes de mel", a
"pequena cidade do interior/
donde você brota como Amor perfeito".
Penso também num poema inédito de Rodrigo de Haro, intitulado "as belas figuras me bastam":
"...Embaralho postais. Taormina,/ Sicília, 1905. Um exilado,/
quase um fugitivo, compôs/ os elementos, as atitudes,/ dos grupos./ /
Aqui estão/ Jacintos, Adonis, Antinoos. Todos/ Pescadores. Ávidos, tal-/ vez mercenários. Não
importa./ São belos e arcaicos/ / e
inocentes e graves// Nesta distante noite de chuva/ me rodeiam,
me bastam".
Haveria outros exemplos
-mas esses me bastam. Espero
que ao leitor também, porque estou entrando em férias; volto dia
11 de agosto.
Texto Anterior: Teatro: Russos vêem peças para Festival Tchecov Próximo Texto: Artes plásticas: Pintura "privada" de Vermeer vai a leilão Índice
|