São Paulo, quarta-feira, 07 de julho de 2004

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MARCELO COELHO

Concisão e delírio

Deus? "Um dia/ foi uma casa de marimbondos na chuva/ que eu chamei assim no hospital/ onde sentia o sofrimento dos outros/ e a paciência casual dos insetos/ que lutavam para construir contra a água."
O poema continua: "E é ainda a palavra deus que atribuo/ aos instintos mais belos, sob a chuva,/ notando que no chão de passagem/ já brotou e feneceu várias vezes o que eu chamo de alma/ e é talvez a calma/ na química de meus desejos/ de oferecer alguma coisa".
Oferecer coisas -em geral os próprios livros- é hábito dos poetas.
Recebi de Sérgio Cohn, editor da "Azougue", um belo livro de capa dura comemorando os dez anos dessa revista. São 400 e tantas páginas, reunindo entrevistas, depoimentos e trechos da obra de muitos poetas e de alguns prosadores. A coletânea vai de Afonso Henriques Neto e Campos de Carvalho a Rubens Rodrigues Torres e Vicente Cecim, passando por Hilda Hilst, Jorge Mautner, Roberto Piva e Leonardo Fróes, cujos versos estava citando acima.
O que têm todos esses escritores em comum? O crítico Bruno Zeni, que participou dos começos da revista em meados da década passada, diz que o grupo dos "azougueiros" procurava "conhecer, encontrar e recuperar, tudo ao mesmo tempo, a obra de alguns poetas que estavam esquecidos e marginalizados", descobrindo que "havia poesia para além de Drummond, Bandeira, João Cabral e dos concretos".
Mais Rimbaud que Mallarmé, mais Jorge de Lima do que João Cabral, mais Allen Ginsberg e os beatniks que Ezra Pound e os provençais. Numa palavra, para os criadores de "Azougue", em 1994, parecia interessar tudo o que se afastasse do concretismo. O pêndulo das preferências literárias refazia seu caminho: a geração que, por volta de 1980, tomara os irmãos Campos e Décio Pignatari como mestres era, na década seguinte, substituída por um grupo mais jovem, em busca de modelos de outro tipo.
Tornavam-se cansativos os valores da precisão técnica, da metalinguagem, da concisão e do "rigor". Aliás, os críticos falam tanto de "rigor" que, se dependesse deles, a melhor poesia brasileira estaria guardada no Instituto Médico Legal. Voltou-se então a falar, como nos anos 60, de transgressão, delírio, mistério e êxtase.
Reduzir tudo a uma rixa entre escolas -ou à reedição das rixas de uma geração anterior- seria ver o lado mais desinteressante da coisa. Há chatices de todos os lados; tanto os "rigorosos" quanto os "delirantes" cedem à tentação da autopropaganda, da poesia programática, da poesia que mais assinala as próprias intenções do que as alcança realmente. O tom declamatório e verborrágico contamina alguns dos depoimentos e poemas de Azougue/dez anos; e invocações ao éter infinito do caos não têm necessariamente mais conteúdo do que o pobre pisca-pisca digital de um poema concreto.
É possível até identificar o que as duas correntes têm em comum. O concretismo buscava aproximar a poesia das artes visuais, combatendo o que houvesse de discursivo e frouxo no verso, apostando numa concisão que, em última análise, tenderia à comunicação instantânea, imediata. Buscava-se a visão simultânea, mais que sucessão temporal.
Neo-surrealistas, desbragados e delirantes contrapunham à objetividade visual e finita dos concretos um discurso subjetivo, torrencial, interminável. Sob a aparente oposição, tratava-se, creio, de um mesmo problema.
É que o delírio, as imagens do inconsciente etc., também desconhecem a ordem de sucessão temporal, a narrativa e a ordenação sintática. Delira-se sempre "no presente". Como no caso da poesia visual, é a simultaneidade, a coexistência de visões no espaço, o que se impõe ao poeta desvairante. É por isso que um dos primeiros sintomas do êxtase dionisíaco, nesses casos, costuma ser o abuso do gerúndio; o tempo presente se prolonga num longo uivo celebratório, do mesmo modo que os verbos costumam ser as primeiras vítimas da cirurgia concretista, que soletrará -também feliz, por que não?- seus puros e sólidos monossílabos.
Claro que, modernamente, a função de narrar acontecimentos está a cargo da prosa, e não da poesia. E é claro que, se a poesia lírica não está interessada em contar histórias, tornam-se complexas as suas relações com a sucessão temporal. Há algo como a busca de um "instante poético", de um "tempo presente" que podemos encontrar tanto nos poemas brevíssimos de Ungaretti e Bandeira quanto nos mais extensos de Valéry e de Drummond.
E que podemos encontrar também em muitos dos poemas recolhidos neste Azougue-dez anos. Penso em Hilda Hilst, dizendo a um morto: "sobrevivi à morte sucessiva das coisas do teu quarto". E que lhe pede, no fim do poema: "Abraça-me. Um quase nada de luz pousou na tua mesa/ E expandiu-se na cor, como um pequeno prisma". Ou em Roberto Piva celebrando as "fontes de mel", a "pequena cidade do interior/ donde você brota como Amor perfeito".
Penso também num poema inédito de Rodrigo de Haro, intitulado "as belas figuras me bastam": "...Embaralho postais. Taormina,/ Sicília, 1905. Um exilado,/ quase um fugitivo, compôs/ os elementos, as atitudes,/ dos grupos./ / Aqui estão/ Jacintos, Adonis, Antinoos. Todos/ Pescadores. Ávidos, tal-/ vez mercenários. Não importa./ São belos e arcaicos/ / e inocentes e graves// Nesta distante noite de chuva/ me rodeiam, me bastam".
Haveria outros exemplos -mas esses me bastam. Espero que ao leitor também, porque estou entrando em férias; volto dia 11 de agosto.


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