São Paulo, Sábado, 07 de Agosto de 1999
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RESENHA DA SEMANA
Para que serve a literatura?

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha


Qual o resenhista que nunca se sentiu ridículo e obsoleto ao falar de literatura numa mídia direcionada para um público cada vez maior e mais indiferenciado, mais interessado na vida dos autores do que nas obras?
Quem quer saber de literatura num mundo impaciente onde, graças a uma massificação avassaladora da cultura, tudo tem que ter um atrativo publicitário, uma função (um lugar no mercado, por exemplo, um resultado financeiro), uma explicação ou uma utilidade?
Se você não entende para que serve a literatura (e sobretudo aquela que não vende e cujo autor não dá capa em revista de moda nem nota em coluna social), deveria ler as "Variedades" do poeta e crítico francês Paul Valéry (1871-1945).
A resposta é muito simples: a literatura não serve para nada. Mas, por isso mesmo, ela ensina a não se contentar com as ofertas, com o que existe: "Todas as atividades do espírito cessariam se os jovens ficassem, um dia, contentes com o que existe".
Entre os ensaios selecionados para essa edição organizada por João Alexandre Barbosa (alguns deles tão célebres e representativos do pensamento de Valéry quanto "Situação de Baudelaire", "Introdução ao Método de Leonardo da Vinci" e "Poesia e Pensamento Abstrato"), existe um em especial cuja atualidade chega a ser extasiante nesses tempos mercadológicos.
Em "Existência do Simbolismo", o poeta e crítico discorre sobre um movimento literário que, há mais de um século, defendia uma proposta ainda hoje radical: "...liberado do grande público, liberado da crítica tradicional que é, ao mesmo tempo, guia e escrava, livre da preocupação com a venda e sem qualquer consideração com a preguiça dos espíritos e os limites do leitor médio, o artista pode se entregar sem restrições às suas experiências".
Um modelo de artista praticamente banido pelo consumismo da sociedade atual que, ao forjar a idéia de que a massificação da cultura oferece finalmente de tudo ao alcance de todos, acaba promovendo a crença conformista de que todas as possibilidades estão disponíveis no mercado e eliminando assim qualquer anseio pelo que não existe.
Os escritores de que fala Valéry "operam uma espécie de revolução na ordem dos valores (...). Longe de escrever para satisfazer um desejo ou uma necessidade preexistentes, escrevem com a esperança de criar esse desejo e essa necessidade; e nada recusam que possa repugnar ou chocar cem leitores se calcularem que, desse modo, conquistarão um único de qualidade superior". O oposto da cultura de massas: a arte como exceção.
Ao definir os simbolistas franceses, Valéry expõe sua idéia de literatura (cujos grandes modelos são Edgar Allan Poe, Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud) e deixa um legado crítico que continua sendo de uma extrema pertinência cem anos depois daquele movimento literário.
A insatisfação com o que existe é o único caminho para uma literatura de verdade. Ler Valéry hoje, diante da resignação geral ao mercado e ao gosto médio, é um antídoto eficaz contra várias imposturas.
Contra aqueles que tentam nos convencer da importância da pesquisa numa obra de ficção: "Nada me é mais triste do que imaginar a quantidade de trabalho gasta em montar um conto sobre o fundamento ilusório de uma erudição sempre mais inútil que qualquer fantasia".
Contra aqueles que pretendem explicar a própria obra: "Não há verdadeiro sentido de um texto. Não há autoridade do autor. Seja o que for que tenha pretendido dizer, escreveu o que escreveu. Uma vez publicado, um texto é como uma máquina que qualquer um pode usar à sua vontade e de acordo com seus meios: não é evidente que o construtor a use melhor que os outros".
Num tempo em que o desinteresse pela literatura é justificado pela sua eventual "dificuldade" e resistência ao discurso comum (discurso que a mídia demagógica defende, visando mais leitores e maior lucro, como mais democrático), a definição que Valéry dá do discurso poético ganha um sentido heróico:
"(...) tão diferentes dos discursos comuns, os versos, extravagantemente ordenados, que não atendem a qualquer necessidade, a não ser às necessidades que devem ser criadas por eles mesmos; que sempre falam apenas de coisas ausentes, ou de coisas profundas e secretamente sentidas; estranhos discursos, que parecem feitos por outro personagem que não aquele que os diz, e dirigir-se a outro que não aquele que os escuta. Em suma, é uma linguagem dentro da linguagem".
Em suma, a literatura é a linguagem que resiste à linguagem usual, da simples comunicação. Resta saber até quando.


Avaliação:     

Livro: Variedades Autor: Paul Valéry Tradução: Maiza Martins de Siqueira Lançamento: Iluminuras Quanto: R$ 25 (220 págs.)


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