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RESENHA DA SEMANA
Para que serve a literatura?
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Qual o resenhista que nunca
se sentiu ridículo
e obsoleto ao falar de literatura
numa mídia direcionada para um público cada vez maior e mais indiferenciado, mais interessado na vida
dos autores do que nas obras?
Quem quer saber de literatura num mundo impaciente onde, graças a uma massificação
avassaladora da cultura, tudo
tem que ter um atrativo publicitário, uma função (um lugar
no mercado, por exemplo, um
resultado financeiro), uma explicação ou uma utilidade?
Se você não entende para que
serve a literatura (e sobretudo
aquela que não vende e cujo
autor não dá capa em revista de
moda nem nota em coluna social), deveria ler as "Variedades" do poeta e crítico francês
Paul Valéry (1871-1945).
A resposta é muito simples: a
literatura não serve para nada.
Mas, por isso mesmo, ela ensina a não se contentar com as
ofertas, com o que existe: "Todas as atividades do espírito
cessariam se os jovens ficassem, um dia, contentes com o
que existe".
Entre os ensaios selecionados
para essa edição organizada
por João Alexandre Barbosa
(alguns deles tão célebres e representativos do pensamento
de Valéry quanto "Situação de
Baudelaire", "Introdução ao
Método de Leonardo da Vinci"
e "Poesia e Pensamento Abstrato"), existe um em especial
cuja atualidade chega a ser extasiante nesses tempos mercadológicos.
Em "Existência do Simbolismo", o poeta e crítico discorre
sobre um movimento literário
que, há mais de um século, defendia uma proposta ainda hoje radical: "...liberado do grande público, liberado da crítica
tradicional que é, ao mesmo
tempo, guia e escrava, livre da
preocupação com a venda e
sem qualquer consideração
com a preguiça dos espíritos e
os limites do leitor médio, o artista pode se entregar sem restrições às suas experiências".
Um modelo de artista praticamente banido pelo consumismo da sociedade atual que,
ao forjar a idéia de que a massificação da cultura oferece finalmente de tudo ao alcance de todos, acaba promovendo a crença conformista de que todas as
possibilidades estão disponíveis no mercado e eliminando
assim qualquer anseio pelo que
não existe.
Os escritores de que fala Valéry "operam uma espécie de
revolução na ordem dos valores (...). Longe de escrever para
satisfazer um desejo ou uma
necessidade preexistentes, escrevem com a esperança de
criar esse desejo e essa necessidade; e nada recusam que possa repugnar ou chocar cem leitores se calcularem que, desse
modo, conquistarão um único
de qualidade superior". O
oposto da cultura de massas: a
arte como exceção.
Ao definir os simbolistas
franceses, Valéry expõe sua
idéia de literatura (cujos grandes modelos são Edgar Allan
Poe, Baudelaire, Mallarmé e
Rimbaud) e deixa um legado
crítico que continua sendo de
uma extrema pertinência cem
anos depois daquele movimento literário.
A insatisfação com o que
existe é o único caminho para
uma literatura de verdade. Ler
Valéry hoje, diante da resignação geral ao mercado e ao gosto
médio, é um antídoto eficaz
contra várias imposturas.
Contra aqueles que tentam
nos convencer da importância
da pesquisa numa obra de ficção: "Nada me é mais triste do
que imaginar a quantidade de
trabalho gasta em montar um
conto sobre o fundamento ilusório de uma erudição sempre
mais inútil que qualquer fantasia".
Contra aqueles que pretendem explicar a própria obra:
"Não há verdadeiro sentido de
um texto. Não há autoridade
do autor. Seja o que for que tenha pretendido dizer, escreveu
o que escreveu. Uma vez publicado, um texto é como uma
máquina que qualquer um pode usar à sua vontade e de acordo com seus meios: não é evidente que o construtor a use
melhor que os outros".
Num tempo em que o desinteresse pela literatura é justificado pela sua eventual "dificuldade" e resistência ao discurso
comum (discurso que a mídia
demagógica defende, visando
mais leitores e maior lucro, como mais democrático), a definição que Valéry dá do discurso poético ganha um sentido
heróico:
"(...) tão diferentes dos discursos comuns, os versos, extravagantemente ordenados,
que não atendem a qualquer
necessidade, a não ser às necessidades que devem ser criadas
por eles mesmos; que sempre
falam apenas de coisas ausentes, ou de coisas profundas e secretamente sentidas; estranhos
discursos, que parecem feitos
por outro personagem que não
aquele que os diz, e dirigir-se a
outro que não aquele que os escuta. Em suma, é uma linguagem dentro da linguagem".
Em suma, a literatura é a linguagem que resiste à linguagem usual, da simples comunicação. Resta saber até quando.
Avaliação:
Livro: Variedades
Autor: Paul Valéry
Tradução: Maiza Martins de Siqueira
Lançamento: Iluminuras
Quanto: R$ 25 (220 págs.)
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