São Paulo, quinta-feira, 07 de setembro de 2000

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CINEMA/ESTRÉIAS

"A CAMAREIRA DO TITANIC"
O imaginário dá o tom em filme de Bigas Luna

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Se "A Camareira do Titanic" não é um grande filme, não é por falta de uma boa história.
A ela: em 1912, Horty, um operário que vive no norte da França, ganha como prêmio (por vencer uma corrida) uma viagem à Inglaterra, onde assistirá à partida do Titanic, em sua viagem inaugural.
Viaja sozinho, já que o patrão sonega um segundo bilhete, com o objetivo meio inconfessável de poder dar em cima da mulher de Horty em plena liberdade.
Lá chegando, o operário encontra uma mulher, com quem tem uma alucinante noite de amor. Ela parte, deixando-lhe uma foto.
Munido da foto, o rapaz volta à França, onde se sente quase forçado a contar aos amigos os detalhes de sua fabulosa viagem.
Aqui, no entanto, começam as dúvidas. Quem era a mulher que o visitou? Seria ela de fato uma camareira do Titanic (e teria morrido durante o naufrágio do navio)? Ou será que Horty criou toda essa história motivado pelo ciúme, pela hipótese de que a mulher, em sua ausência, teria transado com o patrão?
Estamos, já se vê, no território da melhor literatura fantástica do século 20: aquela que trata da incidência do imaginário sobre a realidade (e vice-versa).
A base aqui é uma história do escritor Didier Decoin. O melhor que essa linhagem criou vem, provavelmente, da América Latina e nos é bem familiar: Borges, Bioy Casares, Cortázar são expoentes desse tipo de trabalho que, em última análise, sugere que o homem talvez não seja mais do que um ser imaginário.
No cinema, esse veio foi explorado sobretudo por Alain Resnais ("Hiroshima, Meu Amor", "O Ano Passado em Marienbad"), mas não só, e conduz a uma indagação instigante sobre os limites da ortodoxia realista no cinema. Isto é: o cinema reproduz o mundo tal e qual. Mas que mundo é esse? Existirá ele de fato?
Se Bigas Luna não leva às últimas consequências o tipo de reflexão sugerido pelo texto (do qual ele é um dos roteiristas), é em parte por se deixar seduzir pelas convenções do filme de arte, em parte por não conseguir abdicar da vulgaridade no que tange às relações sexuais.
Como "A Camareira" é um filme no fim das contas pudico, essa vulgaridade se torna um tanto mais gritante e banal, ao mesmo tempo. Se explora bem outra de suas preferências -os atores ambulantes-, Bigas Luna permite que as sugestões de seu roteiro de alguma maneira se percam sob as normas do bem fazer.


A Camareira do Titanic
La Femme de Chambre du Titanic
  
Produção: Itália/França/Espanha,1997
Direção: Bigas Luna
Com: Olivier Martinez, Romane Bohringer, Aitana Sánchez Gijón
Quando: a partir de hoje no Espaço Unibanco




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