São Paulo, segunda, 7 de setembro de 1998

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ANÁLISE
Cineasta tinha um pé no Japão e outro no Ocidente

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

A morte de Akira Kurosawa se dá em um momento emblemático: foi ele quem melhor representou a aproximação entre seu país, o Japão, e o Ocidente, após a Segunda Guerra Mundial.
Quando se consagrou mundialmente, nos anos 50, o Japão não era reconhecido sequer como produtor de rádios de pilha. Era apenas uma nação exótica, que os filmes de guerra americanos representavam como pouco mais que um grupo de bárbaros fanáticos.
Kurosawa morre em meio a uma grande crise econômica num país que, nas últimas décadas, afirmou-se como grande potência econômica e, não raro, como modelo para os próprios ocidentais.
Foi a partir do sucesso de "Rashomon" (1950) no Festival de Veneza, que o cinema japonês começou a ficar conhecido fora da Ásia, narrando a história de um crime acontecido no século 12 sob quatro diferentes pontos de vista.
Essa aproximação com o Ocidente não representava, na verdade, uma ruptura com a cultura de seu país. O próprio do Japão, como disse certa vez Nagisa Oshima, cineasta posterior a Kurosawa, é a grande capacidade de absorver culturas estrangeiras.
Kurosawa era capaz de se deixar influenciar pelo russo Dostoiévski ou pelo inglês Shakespeare. Também podia adaptar um policial escrito pelo norte-americano Ed McBain ("O Homem Mau Dorme Bem", de 1960, possivelmente sua obra-prima) ou fazer um filme de samurai ("Os Sete Samurais", de 1954) que não causava nenhum estranhamento ao público ocidental -tal sua proximidade com os faroestes.
Kurosawa mostrou-se ainda um humanista permeável à influência dos neo-realistas italianos Vittorio De Sica e Cesare Zavattini, de que resultaram filmes como "Viver" (1952) -apaixonante estudo sobre a morte de um burocrata e, com certeza, outro de seus grandes trabalhos.
No entanto, o início de Kurosawa é bem parecido com o de outros cineastas japoneses, inclusive Kenji Mizoguchi: uma vocação para a pintura que acabou desviada para o cinema graças a um emprego na companhia Toho, onde foi assistente de direção antes de realizar seu primeiro filme, "A Lenda do Grande Judô" (1943).
É possível -provável, até- que a obra de Kurosawa pareça menor perto da de clássicos como Mizoguchi e Yasujiro Ozu.
Ainda assim, sua consagração está longe de ser injusta. Nas últimas décadas, mostrou uma grande capacidade para filmes de espetáculo, como "Kagemusha" (1980) e "Ran" (1985).
Talvez tenham sido eles que o capacitaram a ganhar um Oscar honorário em 1989. Não por acaso, recebeu o troféu das mãos de dois fãs célebres -George Lucas e Steven Spielberg, com certeza os dois maiores responsáveis pela retomada dos filmes de grande espetáculo nos EUA, a partir dos anos 70.
Kurosawa soube alternar essa veia com trabalhos intimistas, como "Rapsódia em Agosto", trabalho intimista realizado em 1991, em que trazia à tona os traumas e contradições, mas também afetos envolvidos nas relações entre Japão e EUA desde a bomba de Hiroxima -talvez o mais consistente de seus filmes desde a década de 70.
Também soube ocultar com razoável cuidado uma personalidade angustiada, que o levou a uma tentativa de suicídio em 1971, mas que raramente aflorava em seus filmes. Talvez um dos momentos em que essa angústia aflorou com mais clareza tenha sido no mesmo "Rapsódia em Agosto".
Akira Kurosawa foi um cineasta com um pé em cada mundo. Sua obra é o lugar em que Oriente e Ocidente se encontram, se mostram permeáveis um ao outro, esboçam um entendimento que até a metade do século parecia improvável. O fez passando ao largo das ideologias, ou antes: sustentando que mudar os homens é mais importante do que mudar regimes políticos.
Morre num momento de globalização, em que noções como Oriente e Ocidente não parecem se referir senão a acidentes geográficos. Nem por isso os homens parecem ter mudado tanto assim.



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