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CINEMA - PERSONALIDADE
Morte encerra ciclo clássico do cinema japonês
AMIR LABAKI
enviado especial a Veneza
A morte ontem de Akira Kurosawa, em meio ao 55º Festival de Veneza, tem a circularidade poética
de um de seus roteiros. Foi o festival italiano que o revelou ao mundo, há 47 anos, com o prêmio máximo a "Rashomon" (1950), e é
também aqui que a comunidade
cinematográfica mundial diz
adeus ao velho mestre.
Há quase meia década, Kurosawa vivia afastado, numa casa de
campo, perturbado por problemas de saúde. Aposentadoria não
estava em seus planos. Kurosawa
mantinha-se ativo e estava perto
de terminar o roteiro de um novo
filme, baseado num romance de
Yamamoto Shugoro, o mesmo de
"Dodeskaden".
Com sua morte, conclui-se o ciclo clássico do cinema do Japão,
praticamente resumido pela obra
de seus três grandes mestres: Kenji
Mizoguchi (1898-1958) e Yasujiro
Ozu (1903-1963) e Kurosawa.
Foi ele, o caçula do trio, que
abriu definitivamente os olhos do
Ocidente para o rigor e a originalidade da produção fílmica japonesa já na era sonora.
Três homens influenciaram decisivamente sua carreira como cineasta. Heigo, seu irmão mais velho, foi o primeiro insuperável
modelo. Inicialmente como cinéfilo, depois como "benshi" (o
tradicional narrador da época do
cinema mudo japonês), foi Heigo
o pioneiro educador do olho cinematográfico do irmão.
A segunda grande influência foi
Seiji Tachikawa, seu erudito professor na escola primária, posteriormente seu introdutor à história das artes nas horas vagas. Kurosawa tributava a ele a sólida formação humanista que acumulou.
As dificuldades para a sobrevivência contribuíram para que Akira respondesse um anúncio que
lhe valeu o primeiro emprego num
estúdio de cinema, como terceiro-assistente de direção.
Foi nos estúdios PCL que Kurosawa encontrou seu terceiro e último mestre, o cineasta Kajiro Yamamoto (1902-1973). "Lembro-me de Kurosawa aprendendo
a dirigir", recordou o veterano
Yamamoto. Em 43, Kurosawa assinava seu primeiro longa, "Sugata Sanshiro". O cineasta logo se
firmaria como diretor de dramas
realistas ("Nenhum Pesar pela
Nossa Juventude", 46, "Anjo
Embriagado", 48).
Mas sua consagração mundial só
veio na segunda fase de sua carreira, quando revolucionou o gênero
"jidai-geki" (os filmes históricos
de samurai) com obras como o
polifônico "Rashomon", "Os
Sete Samurais" (1954) e "Trono
Manchado de Sangue" (1957).
O reconhecimento internacional
não lhe garantiu passaporte para o
sucesso eterno. Em fins dos anos
60, Kurosawa enfrenta crescentes
dificuldades para filmar, apesar do
sucesso de "Barba Ruiva" (1965).
Só em 70, lograria um novo título,
"Dodeskaden", mosaico da vida
dos favelados japoneses, rechaçado por crítica e público.
Fechadas as portas para a cineprodução, Kurosawa não vê mais
razões de viver. Em 1971, tenta o
suicídio -e salva-se por pouco. A
experiência o transforma: Kurosawa renasce acessível, abandona a
introspecção e a misantropia.
Com o épico "Dersu Uzala", de
75, o cineasta começava a terceira
e última fase de sua carreira. Kurosawa combina os potenciais épicos
e existenciais do cinema para falar
da barbárie do mundo contemporâneo e vê seus projetos se tornarem viáveis.
"Kagemusha" lhe vale a Palma
de Ouro de Cannes, em 80.
"Ran" (1985), livremente inspirado no "Rei Lear", de Shakespeare, mostra um diretor senhor
de seus talentos. Era o ápice.
Kurosawa faria ainda três outros
filmes, de menor impacto. "Sonhos" (90) é um acerto de contas
com sua formação de pintor e com
a influência freudiana. "Rapsódia
em Agosto" (91) rediscute a questão nuclear sob uma ótica menos
cética que a de "Ran". Por fim,
"Madadayo" é um raro manifesto dionisíaco em louvor à memória dos velhos mestres. Foi seu testamento cívico, mas é "Ran" seu
testamento estético.
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