São Paulo, segunda, 7 de setembro de 1998

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CINEMA - PERSONALIDADE
Morte encerra ciclo clássico do cinema japonês

AMIR LABAKI
enviado especial a Veneza

A morte ontem de Akira Kurosawa, em meio ao 55º Festival de Veneza, tem a circularidade poética de um de seus roteiros. Foi o festival italiano que o revelou ao mundo, há 47 anos, com o prêmio máximo a "Rashomon" (1950), e é também aqui que a comunidade cinematográfica mundial diz adeus ao velho mestre.
Há quase meia década, Kurosawa vivia afastado, numa casa de campo, perturbado por problemas de saúde. Aposentadoria não estava em seus planos. Kurosawa mantinha-se ativo e estava perto de terminar o roteiro de um novo filme, baseado num romance de Yamamoto Shugoro, o mesmo de "Dodeskaden".
Com sua morte, conclui-se o ciclo clássico do cinema do Japão, praticamente resumido pela obra de seus três grandes mestres: Kenji Mizoguchi (1898-1958) e Yasujiro Ozu (1903-1963) e Kurosawa.
Foi ele, o caçula do trio, que abriu definitivamente os olhos do Ocidente para o rigor e a originalidade da produção fílmica japonesa já na era sonora.
Três homens influenciaram decisivamente sua carreira como cineasta. Heigo, seu irmão mais velho, foi o primeiro insuperável modelo. Inicialmente como cinéfilo, depois como "benshi" (o tradicional narrador da época do cinema mudo japonês), foi Heigo o pioneiro educador do olho cinematográfico do irmão.
A segunda grande influência foi Seiji Tachikawa, seu erudito professor na escola primária, posteriormente seu introdutor à história das artes nas horas vagas. Kurosawa tributava a ele a sólida formação humanista que acumulou.
As dificuldades para a sobrevivência contribuíram para que Akira respondesse um anúncio que lhe valeu o primeiro emprego num estúdio de cinema, como terceiro-assistente de direção.
Foi nos estúdios PCL que Kurosawa encontrou seu terceiro e último mestre, o cineasta Kajiro Yamamoto (1902-1973). "Lembro-me de Kurosawa aprendendo a dirigir", recordou o veterano Yamamoto. Em 43, Kurosawa assinava seu primeiro longa, "Sugata Sanshiro". O cineasta logo se firmaria como diretor de dramas realistas ("Nenhum Pesar pela Nossa Juventude", 46, "Anjo Embriagado", 48).
Mas sua consagração mundial só veio na segunda fase de sua carreira, quando revolucionou o gênero "jidai-geki" (os filmes históricos de samurai) com obras como o polifônico "Rashomon", "Os Sete Samurais" (1954) e "Trono Manchado de Sangue" (1957).
O reconhecimento internacional não lhe garantiu passaporte para o sucesso eterno. Em fins dos anos 60, Kurosawa enfrenta crescentes dificuldades para filmar, apesar do sucesso de "Barba Ruiva" (1965). Só em 70, lograria um novo título, "Dodeskaden", mosaico da vida dos favelados japoneses, rechaçado por crítica e público.
Fechadas as portas para a cineprodução, Kurosawa não vê mais razões de viver. Em 1971, tenta o suicídio -e salva-se por pouco. A experiência o transforma: Kurosawa renasce acessível, abandona a introspecção e a misantropia.
Com o épico "Dersu Uzala", de 75, o cineasta começava a terceira e última fase de sua carreira. Kurosawa combina os potenciais épicos e existenciais do cinema para falar da barbárie do mundo contemporâneo e vê seus projetos se tornarem viáveis.
"Kagemusha" lhe vale a Palma de Ouro de Cannes, em 80. "Ran" (1985), livremente inspirado no "Rei Lear", de Shakespeare, mostra um diretor senhor de seus talentos. Era o ápice.
Kurosawa faria ainda três outros filmes, de menor impacto. "Sonhos" (90) é um acerto de contas com sua formação de pintor e com a influência freudiana. "Rapsódia em Agosto" (91) rediscute a questão nuclear sob uma ótica menos cética que a de "Ran". Por fim, "Madadayo" é um raro manifesto dionisíaco em louvor à memória dos velhos mestres. Foi seu testamento cívico, mas é "Ran" seu testamento estético.



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