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MÚSICA
Estréia de Maria Rita é um presente (quase) inaceitável
OTÁVIO DIAS
DA REDAÇÃO
Há algo de sobrenatural no
reino da MPB. Quando
morreu, em 1982, Elis Regina, que
tinha apenas 36 anos, mas já era a
mais clássica das cantoras do país,
ficou suspensa no ar. Para seus
admiradores, seu desaparecimento precoce tornou-se algo sem solução. Mas os sentimentos de perplexidade e de perda foram ficando para trás e encontraram um lugar onde descansar.
De repente, começa-se a comentar que a filha de Elis havia
decidido superar a própria resistência e também cantar. A princípio, não dei bola. Então, há alguns
dias, ouvi seu CD de estréia. Fiquei estupefato: maravilhado e incomodado, mas, acima de tudo,
muito confuso.
Poucos dias após sua morte, Elis
entraria em estúdio para gravar
mais um disco. Pois o CD "Maria
Rita" parece muito semelhante ao
disco que Elis não gravou em
1982. Não há dúvida: é um presente. Mas um presente (quase)
inaceitável. Digo quase porque
não consigo parar de ouvi-lo. E de
mostrá-lo a várias pessoas.
Mas por que inaceitável? Provavelmente porque aqueles sentimentos que já haviam achado
descanso foram catapultados e,
novamente, estão soltos no ar,
sem solução.
Se Maria Rita lembrasse Elis,
mas seu som fosse diferente, talvez fosse uma solução. Mas a filha
é igual à mãe. O repertório é igual,
os arranjos são iguais, o dom de
iluminar as músicas é igual, a dicção, a sustentação e as improvisações são iguais, a emoção e o humor na hora certa são iguais.
No especial exibido anteontem
pela TV Globo, a movimentação,
o gestual e as expressões reforçam
essas impressões. Com surpreendente maturidade, Maria Rita parece iniciar sua trajetória no mesmo ponto em que a de Elis parou.
É como se as duas carreiras se
fundissem e se tornassem uma só.
Ou, ainda mais extraordinário,
como se a mesma força artística se
manifestasse duas vezes no mesmo tempo histórico. Elis morreu,
mas, 21 anos depois, está "de volta" através de sua filha, só que 10
anos mais jovem. Isso tudo dá um
nó na cabeça. E assusta.
Mostro o CD a uma amiga, quero dividir minha aflição. Ela me
diz que o universo é como uma
espiral e que há uma beleza em
pensar que a mãe cantora (ou será
cantora-mãe?) morreu e, anos e
voltas depois, a filha estreante a
reencontrou. E, com ela, todos
nós. Sim, é lindo imaginar que
Maria Rita pegou o bastão da mão
de Elis e agora seguirá com ele.
Outra amiga -aliás, mãe da
primeira, essas mães e filhas me
deixam louco-, também fã incondicional de Elis, lança outra
tese. Diz que Maria Rita, que tinha
cinco anos quando Elis morreu,
uniu-se à mãe por meio da música
e que esse é um processo muito
profundo que merece respeito.
"Não fale mal da moça", exige.
Mas como falar mal?
Abro aqui um parêntese para
um breve testemunho. Conheci
Elis nos seus últimos meses de vida. Lembro-me de sua reação
quando, após o show "Trem
Azul", Elis viu Maria Rita, um
pingo de gente, com uns óculos de
lentes enormes, entrar no camarim. Lágrimas brotaram de seus
olhos, e ela disse algo como "meu
Deus, é minha filha!".
Construo minha própria hipótese radical. Sabendo de antemão
que seria cobrada, a filha, ela mesma e de caso pensado, afirma
"Não sou parecida, sou igual!". E,
dessa maneira, às avessas, torna
irrelevantes as inevitáveis comparações.
Mas será, tudo isso, possível?
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