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RESENHA DA SEMANA
O Sócrates de Chicago
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
"Ravelstein", o
novo romance
de Saul Bellow,
84, a ser lançado
este mês nos Estados Unidos, faz
parte do mesmo universo que
inspirou Louis Begley em "O
Olhar de Max" (1994): trata de
uma elite intelectual e financeira de americanos para além da
meia-idade diante dos desdobramentos do capitalismo contemporâneo e da irrupção da
Aids.
Tanto Begley quanto Bellow
fazem a crônica do mal-estar
que advém dessa combinação
em que a morte -reforçada
pela idade dos personagens,
sua decadência física e suas desilusões intelectuais e afetivas- é uma sombra cada vez
mais presente.
Em "Ravelstein", o autor dá
ênfase ao capitalismo pós-industrial como cenário da morte
-sem que haja nisso alguma
ideologia; apenas uma constatação perplexa e trágica.
À diferença de seus livros anteriores, também não há muita
ironia ou humor, a não ser vez
por outra, como quando o narrador diz que está guardando
"Finnegans Wake" para o asilo,
porque é melhor entrar na eternidade lendo Joyce do que vendo "Os Simpsons" na TV.
Bellow sempre lidou com
personagens que se debatiam
em dilemas existenciais sob a
capa da glória capitalista. Em
"Ravelstein", eles chegam ao
paroxismo. Diante da morte,
agora eles se debatem entre capitalismo e metafísica, entre
Keynes e Platão.
O narrador do romance é um
célebre escritor judeu de Chicago -à imagem do próprio Bellow- que, aos 70 e tantos
anos, recebe a missão de fazer a
biografia de um de seus maiores amigos, quase 20 anos mais
moço: Abe Ravelstein, um influente e polêmico filósofo político, também judeu, além de
homossexual, que acaba de
morrer de Aids -à imagem do
professor americano Allan
Bloom.
No passado, quando Ravelstein se viu em apuros financeiros, o amigo escritor lhe sugeriu que redigisse as idéias controvertidas de suas aulas tão
populares. Best seller imediato
e retumbante, o livro permitiu
ao filósofo passar seus últimos
anos num fausto nababesco.
Agora, pouco tempo antes de
morrer, é Ravelstein quem pede ao narrador que escreva sua
vida e lhe indica a biografia de
Keynes como modelo. O romance é o resultado dessa incumbência.
As biografias sempre foram
uma obsessão de Bellow. Ao falar do outro, o biógrafo está, na
realidade, falando de si mesmo.
A morte do biografado acaba
servindo de pretexto para o
narrador falar de sua própria
morte: "O legado de Ravelstein
para mim foi um tema -ele
achou que estava me dando
um tema, talvez o melhor que
eu já tive, talvez o único realmente importante. Mas o que
tal legado significava era que
ele morreria antes de mim. (...)
Ao me escolher (...), ele me
obrigou a considerar tanto a
minha morte como a dele."
Ravelstein é um "scholar"
humanista de direita com certa
penetração nos círculos do alto
poder americano, sobretudo
republicano. É também um fofoqueiro inveterado e um homem urbano, amante do estilo,
seja no âmbito das idéias, seja
no das grifes de roupas ou marcas de carros.
"Ele disse, repetindo a opinião de Sócrates no "Fedro",
que uma árvore, por mais bonita que fosse à visão, nunca dizia uma palavra, e que o diálogo só era possível na cidade, entre os homens. Porque amava
falar, pensar enquanto falava,
recostar-se enquanto era tomado por uma torrente de idéias
-instruía, examinava, debatia, descartava erros, celebrava
princípios essenciais, mesclando o grego com uma tradução
fluente e gaguejando feito um
louco, rindo conforme bordava
suas exposições com piadas judaicas."
Ravelstein é um intelectual
independente, judeu admirador de Céline, um esteta da academia acostumado a treinar
seus alunos para ocuparem
cargos de poder, que de repente constata a falência da educação humanista sob o império
americano, onde só a educação
técnica sobrevive.
Ele é o Sócrates de Chicago:
"Você não deve se deixar engolir pela história do seu próprio
tempo, Ravelstein sempre dizia. E citava Schiller: "Viva com
o seu século, mas não seja sua
criatura"."
Em "Ravelstein", o capitalismo triunfante da atualidade é,
curiosamente, cenário de um
grande mal-estar. A figura que
o representa é problemática.
Apesar de ser admirador de
Keynes, frequentador dos círculos republicanos e de acreditar na sociedade liberal americana como melhor barreira
contra os fascismos e o comunismo, o que melhor define a
identidade de Ravelstein é o paroxismo.
Quando o narrador lembra
ao biografado que, ao passar
por Chicago, o matemático e
idealista inglês A.N. Whitehead
profetizou que a cidade estava
destinada a liderar o mundo
moderno, tornando-se uma
nova Atenas, porque ali a inteligência estava à disposição de
todos, Ravelstein dá uma gargalhada. Diante do que vê, só
lhe resta retrucar que na cabeça
de Whitehead não havia filosofia suficiente "para encher um
balão de aniversário".
Avaliação:
Livro: Ravelstein
Autor: Saul Bellow
Editora: Viking
Quanto: US$ 24,95 (224 págs.)
Onde encontrar: www.amazon.com
ou www.bn.com
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