São Paulo, sábado, 08 de abril de 2000


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RESENHA DA SEMANA

O Sócrates de Chicago

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

"Ravelstein", o novo romance de Saul Bellow, 84, a ser lançado este mês nos Estados Unidos, faz parte do mesmo universo que inspirou Louis Begley em "O Olhar de Max" (1994): trata de uma elite intelectual e financeira de americanos para além da meia-idade diante dos desdobramentos do capitalismo contemporâneo e da irrupção da Aids.
Tanto Begley quanto Bellow fazem a crônica do mal-estar que advém dessa combinação em que a morte -reforçada pela idade dos personagens, sua decadência física e suas desilusões intelectuais e afetivas- é uma sombra cada vez mais presente.
Em "Ravelstein", o autor dá ênfase ao capitalismo pós-industrial como cenário da morte -sem que haja nisso alguma ideologia; apenas uma constatação perplexa e trágica.
À diferença de seus livros anteriores, também não há muita ironia ou humor, a não ser vez por outra, como quando o narrador diz que está guardando "Finnegans Wake" para o asilo, porque é melhor entrar na eternidade lendo Joyce do que vendo "Os Simpsons" na TV.
Bellow sempre lidou com personagens que se debatiam em dilemas existenciais sob a capa da glória capitalista. Em "Ravelstein", eles chegam ao paroxismo. Diante da morte, agora eles se debatem entre capitalismo e metafísica, entre Keynes e Platão.
O narrador do romance é um célebre escritor judeu de Chicago -à imagem do próprio Bellow- que, aos 70 e tantos anos, recebe a missão de fazer a biografia de um de seus maiores amigos, quase 20 anos mais moço: Abe Ravelstein, um influente e polêmico filósofo político, também judeu, além de homossexual, que acaba de morrer de Aids -à imagem do professor americano Allan Bloom.
No passado, quando Ravelstein se viu em apuros financeiros, o amigo escritor lhe sugeriu que redigisse as idéias controvertidas de suas aulas tão populares. Best seller imediato e retumbante, o livro permitiu ao filósofo passar seus últimos anos num fausto nababesco.
Agora, pouco tempo antes de morrer, é Ravelstein quem pede ao narrador que escreva sua vida e lhe indica a biografia de Keynes como modelo. O romance é o resultado dessa incumbência.
As biografias sempre foram uma obsessão de Bellow. Ao falar do outro, o biógrafo está, na realidade, falando de si mesmo. A morte do biografado acaba servindo de pretexto para o narrador falar de sua própria morte: "O legado de Ravelstein para mim foi um tema -ele achou que estava me dando um tema, talvez o melhor que eu já tive, talvez o único realmente importante. Mas o que tal legado significava era que ele morreria antes de mim. (...) Ao me escolher (...), ele me obrigou a considerar tanto a minha morte como a dele."
Ravelstein é um "scholar" humanista de direita com certa penetração nos círculos do alto poder americano, sobretudo republicano. É também um fofoqueiro inveterado e um homem urbano, amante do estilo, seja no âmbito das idéias, seja no das grifes de roupas ou marcas de carros.
"Ele disse, repetindo a opinião de Sócrates no "Fedro", que uma árvore, por mais bonita que fosse à visão, nunca dizia uma palavra, e que o diálogo só era possível na cidade, entre os homens. Porque amava falar, pensar enquanto falava, recostar-se enquanto era tomado por uma torrente de idéias -instruía, examinava, debatia, descartava erros, celebrava princípios essenciais, mesclando o grego com uma tradução fluente e gaguejando feito um louco, rindo conforme bordava suas exposições com piadas judaicas."
Ravelstein é um intelectual independente, judeu admirador de Céline, um esteta da academia acostumado a treinar seus alunos para ocuparem cargos de poder, que de repente constata a falência da educação humanista sob o império americano, onde só a educação técnica sobrevive.
Ele é o Sócrates de Chicago: "Você não deve se deixar engolir pela história do seu próprio tempo, Ravelstein sempre dizia. E citava Schiller: "Viva com o seu século, mas não seja sua criatura"."
Em "Ravelstein", o capitalismo triunfante da atualidade é, curiosamente, cenário de um grande mal-estar. A figura que o representa é problemática. Apesar de ser admirador de Keynes, frequentador dos círculos republicanos e de acreditar na sociedade liberal americana como melhor barreira contra os fascismos e o comunismo, o que melhor define a identidade de Ravelstein é o paroxismo.
Quando o narrador lembra ao biografado que, ao passar por Chicago, o matemático e idealista inglês A.N. Whitehead profetizou que a cidade estava destinada a liderar o mundo moderno, tornando-se uma nova Atenas, porque ali a inteligência estava à disposição de todos, Ravelstein dá uma gargalhada. Diante do que vê, só lhe resta retrucar que na cabeça de Whitehead não havia filosofia suficiente "para encher um balão de aniversário".


Avaliação:   

Livro: Ravelstein
Autor: Saul Bellow
Editora: Viking
Quanto: US$ 24,95 (224 págs.)
Onde encontrar: www.amazon.com ou www.bn.com




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