São Paulo, sábado, 08 de abril de 2000


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ROMANCE

Susan Sontag recria diva polonesa do século 19


SARAH KERR
do "The NYT Review of Books"

A narradora de "In America" não é identificada. As únicas pistas que temos a seu respeito são sua voz racional e controlada e alguns detalhes biográficos que deixa escapar de relance -juventude passada no Arizona e na Califórnia, casamento na juventude com eminente intelectual muitos anos mais velho-, que, não por acaso, lembram a própria autora do livro, a célebre Susan Sontag. Quando a encontramos pela primeira vez, ela está caminhando ao ar livre, no meio de uma tempestade de inverno. Tremendo de frio, passa em frente a um hotel, observa que uma festa está acontecendo no térreo e resolve entrar na festa, despercebida, para se aquecer. Nesse momento acontece algo estranho. A linguagem da narradora é contemporânea (ela fala, por exemplo, em "fazer um upgrade" de suas informações). Mas os hóspedes do hotel conversam numa linguagem que lhe é estranha. Mais estranho ainda: as mulheres usam vestidos que arrastam no chão, enquanto os homens ostentam coletes; o local é iluminado por malcheirosos lampiões de gás, e os táxis nos quais os convidados chegam são coches puxados por cavalos.
Será alguma festa à fantasia? Terá a narradora, sem saber como, entrado numa máquina do tempo? Não exatamente. Embora não possa falar com as pessoas na festa, com um pouco de esforço ela é capaz de descobrir quem são e a que época pertencem. O lugar é Varsóvia sob ocupação russa, e o ano é 1876. A convidada de honra é a mais importante atriz polonesa da época, a bela e carismática Maryna Zalezowska.
É aqui, porém, que entra a parte mais bizarra: nossa narradora sabe de tudo isso porque foi ela mesma quem inventou a cena toda. A atriz Maryna Zalezowska existiu realmente e viveu aventuras que lembram a grosso modo as que o livro vai começar a relatar. Mas todo o resto que vemos na festa, desde as conversas dos convidados até o som dos sinos da igreja ecoando na cidade, o criado de rosto vermelho, carregando, esbaforido, uma pilha de lenha para a lareira, as tetrazes pretas assadas com perdizes -tudo isso saiu da cabeça da narradora.
Ela nos confessa que estivera se esforçando para criar uma história sobre um grupo diferente de pessoas (mais uma referência a ela mesma: a festa num hotel que teria tido a intenção de descrever teria ocorrido na mesma época, mas em Sarajevo, cidade que, segundo é amplamente sabido, Sontag, dando mostras de muita coragem, visitou no auge dos bombardeios, no início dos anos 1990).
Em vez disso, porém, sua imaginação a levou até essa festa em Varsóvia, e foi lá que ela resolveu ficar. "Pensei que, se ouvisse, observasse e refletisse", raciocina, "tomando o tempo que fosse preciso para isso, eu seria capaz de compreender as pessoas nessa sala, que sua história falaria comigo -só não sei explicar como eu sabia disso." Escolher a ambientação e o elenco de personagens de uma história, selecionar os detalhes específicos, isso é um processo complicado para um romancista, feito parte de capricho e parte de espera para que o detalhe autêntico se ofereça por conta própria. Ao dramatizar esse processo, Sontag acabou por revelar uma verdade metafictícia.
Soando um pouco passiva e complacente, a narradora anuncia: "Cada um de nós carrega dentro de si uma sala que apenas aguarda o momento de ser mobiliada e povoada".
Voltemos, então, à história, que melhora muito quando a narradora sai de seu caminho e deixa os personagens mostrar a que vieram. Nossa heroína, Maryna, é robusta e de queixo pesado. Aos 35 anos, já passou da idade de ser considerada bela no sentido mais preciso do termo, mas possui os "gestos habilidosos" e o "olhar dominante" próprios de uma diva e que a fazem parecer a criatura mais maravilhosa que já se viu.
Ainda enfraquecida pelo tifo que a acometeu recentemente e cansada das indignidades da ocupação russa, teme estar perdendo sua paixão pelo teatro. Assim, decide desistir de sua carreira e partir para a América e convence um cortejo completo -incluindo seu marido, homem decente, mas desinteressado em sexo, e um jovem jornalista que, mais do que qualquer outra coisa, deseja tornar-se seu amante- a acompanhá-la na viagem.
Seu plano, um tanto quanto indefinido, é que todos se unam para viver uma vida comunitária em algum lugar, uma existência mais autêntica. O grupo é inspirado pelas idéias de Fourier, que estavam em voga na época, mas, sobretudo, pelo anseio que a atriz cansada sente de deixar para trás o papel de Maryna Zalezowska e lançar-se numa nova vida, mais próxima da terra.
Dois integrantes do grupo que viajam à frente dos outros (para visitar locais possíveis para o grupo se estabelecer) escolhem Anaheim, Califórnia (que hoje abriga a Disneylândia, mas, na época, aparentemente, era um ímã que atraía muitos europeus que tentavam aprender a viver da agricultura). Vivendo de suas economias, os poloneses arrendam um sítio, lêem folhetos sobre agricultura, plantam um jardim e, dando mostras de ingenuidade, tentam tornar-se viticultores. Mas então, depois de alguns meses belos, mas marcados por dificuldades, o idílio chega ao fim.
Como faz em seus ensaios, Sontag demonstra ter uma sensibilidade fantástica pela maneira como evoluem os estilos teatrais, aparentando vitalidade e veracidade quando irrompem em cena, mas ganhando ares cada vez mais bizarros e constrangedores quando as platéias decidem que já estão ultrapassados.
A ficção de Sontag, sempre fértil em idéias, já flertou com a fantasia em outras ocasiões. Já no vanguardista "Death Kit" (1967), Sontag mergulhou fundo nos sonhos dissociativos de um homem mediano. Mais tarde, deixou os romances de lado por cerca de 25 anos, e, quando retornou à ficção, em 1992, com "The Volcano Lover", o relato que fez do caso entre lorde Nelson e lady Emma Hamilton parecia indicar sua atração pela fantasia do tipo mais tradicional. Com seus amantes célebres e cenário napolitano, o livro tinha todo o glamour romântico de uma matinê de sábado de eras passadas.
"In America" também tem glamour, mas ele é todo canalizado para a figura de Maryna, que nunca comete um gafe, jamais age sem graciosidade ou com covardia, nunca faz nada para contradizer as palavras de um proprietário de bar que a reverencia e que diz: "Você é uma estrela. Todo mundo a adora. Você pode fazer qualquer coisa que quiser". Desconfio que até mesmo Sontag admitiria que Maryna é, em parte, fantasia pura: a quintessência da diva imaculada.
De todos os temas de Sontag, este é ao mesmo tempo o mais trabalhoso e o mais leve. As observações que ela faz a respeito da América (é um lugar que "quer ser eternamente refeito, para jogar fora as expectativas do passado e recomeçar carregando um fardo mais leve") já vêm sendo feitas há séculos por muitos de nossos maiores escritores, sem falar em Madonna. E esta não é a primeira vez em que Sontag retoma imagens que nos são espantosamente familiares.


Tradução Clara Allain


Livro: In America
Autora: Susan Sontag
Editora: Farrar, Straus & Giroux.
Quanto: US$ 26 (388 págs.)
Onde encontrar: www.bn.com





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