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ROMANCE
Susan Sontag recria diva polonesa do século 19
SARAH KERR
do "The NYT Review of Books"
A narradora de
"In America" não é
identificada. As
únicas pistas que
temos a seu respeito são sua voz racional e controlada e alguns detalhes biográficos que deixa escapar
de relance -juventude passada
no Arizona e na Califórnia, casamento na juventude com eminente intelectual muitos anos
mais velho-, que, não por acaso,
lembram a própria autora do livro, a célebre Susan Sontag.
Quando a encontramos pela primeira vez, ela está caminhando ao
ar livre, no meio de uma tempestade de inverno. Tremendo de
frio, passa em frente a um hotel,
observa que uma festa está acontecendo no térreo e resolve entrar
na festa, despercebida, para se
aquecer. Nesse momento acontece algo estranho. A linguagem da
narradora é contemporânea (ela
fala, por exemplo, em "fazer um
upgrade" de suas informações).
Mas os hóspedes do hotel conversam numa linguagem que lhe é
estranha. Mais estranho ainda: as
mulheres usam vestidos que arrastam no chão, enquanto os homens ostentam coletes; o local é
iluminado por malcheirosos lampiões de gás, e os táxis nos quais
os convidados chegam são coches
puxados por cavalos.
Será alguma festa à fantasia? Terá a narradora, sem saber como,
entrado numa máquina do tempo? Não exatamente. Embora não
possa falar com as pessoas na festa, com um pouco de esforço ela é
capaz de descobrir quem são e a
que época pertencem. O lugar é
Varsóvia sob ocupação russa, e o
ano é 1876. A convidada de honra
é a mais importante atriz polonesa da época, a bela e carismática
Maryna Zalezowska.
É aqui, porém, que entra a parte
mais bizarra: nossa narradora sabe de tudo isso porque foi ela
mesma quem inventou a cena toda. A atriz Maryna Zalezowska
existiu realmente e viveu aventuras que lembram a grosso modo
as que o livro vai começar a relatar. Mas todo o resto que vemos
na festa, desde as conversas dos
convidados até o som dos sinos
da igreja ecoando na cidade, o
criado de rosto vermelho, carregando, esbaforido, uma pilha de
lenha para a lareira, as tetrazes
pretas assadas com perdizes
-tudo isso saiu da cabeça da narradora.
Ela nos confessa que estivera se
esforçando para criar uma história sobre um grupo diferente de
pessoas (mais uma referência a
ela mesma: a festa num hotel que
teria tido a intenção de descrever
teria ocorrido na mesma época,
mas em Sarajevo, cidade que, segundo é amplamente sabido,
Sontag, dando mostras de muita
coragem, visitou no auge dos
bombardeios, no início dos anos
1990).
Em vez disso, porém, sua imaginação a levou até essa festa em
Varsóvia, e foi lá que ela resolveu
ficar. "Pensei que, se ouvisse, observasse e refletisse", raciocina,
"tomando o tempo que fosse preciso para isso, eu seria capaz de
compreender as pessoas nessa sala, que sua história falaria comigo
-só não sei explicar como eu sabia disso." Escolher a ambientação e o elenco de personagens de
uma história, selecionar os detalhes específicos, isso é um processo complicado para um romancista, feito parte de capricho e parte de espera para que o detalhe autêntico se ofereça por conta própria. Ao dramatizar esse processo, Sontag acabou por revelar
uma verdade metafictícia.
Soando um pouco passiva e
complacente, a narradora anuncia: "Cada um de nós carrega dentro de si uma sala que apenas
aguarda o momento de ser mobiliada e povoada".
Voltemos, então, à história, que
melhora muito quando a narradora sai de seu caminho e deixa os
personagens mostrar a que vieram. Nossa heroína, Maryna, é
robusta e de queixo pesado. Aos
35 anos, já passou da idade de ser
considerada bela no sentido mais
preciso do termo, mas possui os
"gestos habilidosos" e o "olhar
dominante" próprios de uma diva e que a fazem parecer a criatura
mais maravilhosa que já se viu.
Ainda enfraquecida pelo tifo
que a acometeu recentemente e
cansada das indignidades da ocupação russa, teme estar perdendo
sua paixão pelo teatro. Assim, decide desistir de sua carreira e partir para a América e convence um
cortejo completo -incluindo seu
marido, homem decente, mas desinteressado em sexo, e um jovem
jornalista que, mais do que qualquer outra coisa, deseja tornar-se
seu amante- a acompanhá-la na
viagem.
Seu plano, um tanto quanto indefinido, é que todos se unam para viver uma vida comunitária em
algum lugar, uma existência mais
autêntica. O grupo é inspirado pelas idéias de Fourier, que estavam
em voga na época, mas, sobretudo, pelo anseio que a atriz cansada sente de deixar para trás o papel de Maryna Zalezowska e lançar-se numa nova vida, mais próxima da terra.
Dois integrantes do grupo que
viajam à frente dos outros (para
visitar locais possíveis para o grupo se estabelecer) escolhem Anaheim, Califórnia (que hoje abriga
a Disneylândia, mas, na época,
aparentemente, era um ímã que
atraía muitos europeus que tentavam aprender a viver da agricultura). Vivendo de suas economias, os poloneses arrendam um
sítio, lêem folhetos sobre agricultura, plantam um jardim e, dando
mostras de ingenuidade, tentam
tornar-se viticultores. Mas então,
depois de alguns meses belos,
mas marcados por dificuldades, o
idílio chega ao fim.
Como faz em seus ensaios, Sontag demonstra ter uma sensibilidade fantástica pela maneira como evoluem os estilos teatrais,
aparentando vitalidade e veracidade quando irrompem em cena,
mas ganhando ares cada vez mais
bizarros e constrangedores quando as platéias decidem que já estão ultrapassados.
A ficção de Sontag, sempre fértil
em idéias, já flertou com a fantasia em outras ocasiões. Já no vanguardista "Death Kit" (1967),
Sontag mergulhou fundo nos sonhos dissociativos de um homem
mediano. Mais tarde, deixou os
romances de lado por cerca de 25
anos, e, quando retornou à ficção,
em 1992, com "The Volcano Lover", o relato que fez do caso entre
lorde Nelson e lady Emma Hamilton parecia indicar sua atração
pela fantasia do tipo mais tradicional. Com seus amantes célebres e cenário napolitano, o livro
tinha todo o glamour romântico
de uma matinê de sábado de eras
passadas.
"In America" também tem glamour, mas ele é todo canalizado
para a figura de Maryna, que nunca comete um gafe, jamais age
sem graciosidade ou com covardia, nunca faz nada para contradizer as palavras de um proprietário de bar que a reverencia e que
diz: "Você é uma estrela. Todo
mundo a adora. Você pode fazer
qualquer coisa que quiser". Desconfio que até mesmo Sontag admitiria que Maryna é, em parte,
fantasia pura: a quintessência da
diva imaculada.
De todos os temas de Sontag, este é ao mesmo tempo o mais trabalhoso e o mais leve. As observações que ela faz a respeito da
América (é um lugar que "quer
ser eternamente refeito, para jogar fora as expectativas do passado e recomeçar carregando um
fardo mais leve") já vêm sendo
feitas há séculos por muitos de
nossos maiores escritores, sem falar em Madonna. E esta não é a
primeira vez em que Sontag retoma imagens que nos são espantosamente familiares.
Tradução Clara Allain
Livro: In America
Autora: Susan Sontag
Editora: Farrar, Straus & Giroux.
Quanto: US$ 26 (388 págs.)
Onde encontrar: www.bn.com
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