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Professor defende feliz ignorância de antepassados
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
Em 1993, David Gelernter,
professor de ciências da computação em Yale, sofreu um
atentado do terrorista Unabomber. Perdeu a mão direita
e teve ferimentos graves no abdome. Theodore Kaczinski,
autor confesso do atentado, foi
condenado à prisão perpétua.
Gelernter não está satisfeito.
Em artigo publicado no
Mais! de domingo passado,
Gelernter defende a pena de
morte. Se o texto fosse vazado
em termos emocionais e vingativos, não teríamos autoridade
moral para discuti-lo. O homem quase morreu, foi vítima
de uma agressão covarde e
premeditada. "Tem mais", como se diz, de querer mesmo a
pena de morte para o Unabomber.
Mas não é esse o tom de Gelernter. Num misto de lamento
e advertência, seu texto se propõe a apontar os males de uma
"América" onde não há mais
certezas. A dificuldade dos intelectuais em defender a pena
de morte surge em função "de
nossa atitude moral evasiva".
A pena de morte representa,
diz Gelernter, uma posição de
certeza moral: uma crença no
Mal absoluto e na necessidade
de puni-lo. Mas "a América"
deixa de raciocinar em termos
de culpa. Tende a ver no criminoso um doente. A responsabilidade de julgar se esvai. Os valores se invertem. A "comunidade" duvida de si mesma.
Minha reação, ao ler esse artigo, foi de incredulidade. Há
muito tempo eu não via nada
tão conservador nas páginas
do Mais!. Gelernter não usa o
conceito de "decadência da civilização", mas nem precisa. A
nostalgia pelas antigas crenças
em valores sólidos talvez seja
tão antiga quanto a própria civilização. Imagino que, quando inventaram a roda, algum
sábio tenha observado que isso
iria diminuir a noção de sacrifício e de trabalho duro em que
se baseava a civilização das
cavernas.
Faço uma caricatura, é claro.
Mas quem faz caricatura, e faz
a sério, é Gelernter. Leia-se este trecho, sobre a famosa "inversão de valores": "Permite-se
lecionar o que é orgasmo nas
escolas públicas, mas não os
Dez Mandamentos. Admiramos mulheres masculinizadas
e homens efeminados. Nada
disso tem relação direta com a
pena de morte, embora nos
obrigue a abordar toda a questão da moralidade no contexto
ainda mais amplo dessa confusão alucinada sobre distinções elementares no país".
Fico simplesmente sem entender. Que haja educação sexual em vez de ensino religioso
nas escolas públicas é, na minha opinião, um grande progresso. Mas esqueçamos a
idéia de progresso. Parece que
está fora de moda. O que não
se sustenta, no texto de Gelernter, é considerar "inversão de
valores" o que simplesmente
poderia ser entendido como
mudança.
Só se eu considerasse natural, certo e legítimo, desde o
"Gênesis", o padrão de masculinidade e de feminilidade representado pelos pais do Pimentinha ou de Will Robinson
em "Perdidos no Espaço", como valor imutável da América
o casamento no gênero do seriado "I Love Lucy", como inscrito por Deus nas Tábuas da
Lei o mandamento de que não
se deve instruir adolescentes
sobre orgasmo, aí sim estaríamos vivendo uma "inversão de
valores".
Uma mudança de comportamento não é inversão de valores. A partir do ponto de vista
de Gelernter, pode-se concluir
que no dia em que as mulheres
passaram a usar calças compridas os valores da "América"
começaram a se "inverter".
Mas passemos à pena de morte.
Para Gelernter, hesita-se em
aplicá-la porque há dúvidas
demais sobre o que é culpa e
inocência. Se o argumento do
autor fosse correto, provavelmente o Unabomber estaria
absolvido. Mas foi condenado
à prisão perpétua. Parece-me
razoável em matéria de certeza sobre a culpabilidade dele.
Não há "comunidade" com
"valores morais" mais sólidos
do que uma comunidade de
linchadores. Os "valores" não
se "inverteram" no Irã de Khomeini. O sujeito que acha que
a terra é plana tem menos "dúvidas" do que um cientista comum.
De que "valores", afinal, estamos falando? Eu poderia argumentar do seguinte modo:
qual o grande problema, afinal, de considerarmos o Unabomber um doente, em vez de
um vilão? Certamente, não sabemos como tratar dessa doença. A prisão não irá recuperá-lo, imagino. Não se inventou coisa melhor. Mas ao advogar a pena de morte estamos
apenas querendo matar a dúvida que existe dentro de nós; é
o que fazem todos os fanáticos,
a começar pelo próprio Unabomber.
Mas é claro que Gelernter
não é um fanático. E aí surgem
mais complicações de seu artigo. Para defender os "valores
da comunidade", Gelernter
ataca os intelectuais. Mas, para lamentar a corrupção moral
generalizada da "América",
supõe que intelectuais e "comunidade" partilham da mesma atitude. Defendendo a certeza moral, o artigo inteiro
adota um tom de questionamento untuoso, supostamente
reflexivo.
Invoca-se, a determinada altura, o nome de Kant como defensor da pena de morte, contra atitudes falsamente humanitárias e "sentimentais". Ora,
não vejo nenhum sentimentalismo em torno do Unabomber. Na verdade, é precisamente o pensamento conservador
("antigamente éramos mais
durões, antigamente os valores
eram fixos, ninguém questionava") que peca pelo sentimentalismo.
Imagina-se uma "comunidade" que fosse mais "feliz"
quando vigoravam os velhos
valores. Só esse termo "comunidade" já é de causar náuseas. E se há algo capaz de levar os homens à maioridade,
para lembrar também o velho
Kant, é o inconformismo diante de crenças recebidas sem
questionamento.
O que me parece interessante, no conservadorismo atual,
é o uso que termina fazendo de
todo um arsenal implícito de
"esquerda". A crítica ao progresso, ao Iluminismo, à ciência etc., e a reação à estreiteza
do pensamento do século 19 tiveram momentos altos no
marxismo, em Foucault, na escola de Frankfurt, no pensamento antropológico. Mas todas essas críticas foram feitas
em nome de mais conhecimento, mais razão, mais instabilidade nos sacrossantos "valores".
Cria-se um paradoxo. A autocrítica do Iluminismo passa
a admitir um momento de medo; o desconforto intelectual
daí resultante se inclina para o
conservadorismo, mas calçado
num tom "moderninho", ou
melhor, "pós-moderninho".
Um ceticismo de butique. O
conservadorismo surge como
novidade "avançada".
Esse ceticismo conservador
quanto à razão e ao progresso
gira, assim, em falso. Não se
aparenta ao ato iluminista
-onde a dúvida e o questionamento são passos no rumo
de maior conhecimento- e
sim a um "duvidar da dúvida",
a um "relativismo absoluto"
que só se aquieta quando defende o preconceito, o fanatismo e a feliz ignorância de nossos antepassados.
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