São Paulo, quarta, 8 de julho de 1998

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Professor defende feliz ignorância de antepassados

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Em 1993, David Gelernter, professor de ciências da computação em Yale, sofreu um atentado do terrorista Unabomber. Perdeu a mão direita e teve ferimentos graves no abdome. Theodore Kaczinski, autor confesso do atentado, foi condenado à prisão perpétua. Gelernter não está satisfeito.
Em artigo publicado no Mais! de domingo passado, Gelernter defende a pena de morte. Se o texto fosse vazado em termos emocionais e vingativos, não teríamos autoridade moral para discuti-lo. O homem quase morreu, foi vítima de uma agressão covarde e premeditada. "Tem mais", como se diz, de querer mesmo a pena de morte para o Unabomber.
Mas não é esse o tom de Gelernter. Num misto de lamento e advertência, seu texto se propõe a apontar os males de uma "América" onde não há mais certezas. A dificuldade dos intelectuais em defender a pena de morte surge em função "de nossa atitude moral evasiva".
A pena de morte representa, diz Gelernter, uma posição de certeza moral: uma crença no Mal absoluto e na necessidade de puni-lo. Mas "a América" deixa de raciocinar em termos de culpa. Tende a ver no criminoso um doente. A responsabilidade de julgar se esvai. Os valores se invertem. A "comunidade" duvida de si mesma.
Minha reação, ao ler esse artigo, foi de incredulidade. Há muito tempo eu não via nada tão conservador nas páginas do Mais!. Gelernter não usa o conceito de "decadência da civilização", mas nem precisa. A nostalgia pelas antigas crenças em valores sólidos talvez seja tão antiga quanto a própria civilização. Imagino que, quando inventaram a roda, algum sábio tenha observado que isso iria diminuir a noção de sacrifício e de trabalho duro em que se baseava a civilização das cavernas.
Faço uma caricatura, é claro. Mas quem faz caricatura, e faz a sério, é Gelernter. Leia-se este trecho, sobre a famosa "inversão de valores": "Permite-se lecionar o que é orgasmo nas escolas públicas, mas não os Dez Mandamentos. Admiramos mulheres masculinizadas e homens efeminados. Nada disso tem relação direta com a pena de morte, embora nos obrigue a abordar toda a questão da moralidade no contexto ainda mais amplo dessa confusão alucinada sobre distinções elementares no país".
Fico simplesmente sem entender. Que haja educação sexual em vez de ensino religioso nas escolas públicas é, na minha opinião, um grande progresso. Mas esqueçamos a idéia de progresso. Parece que está fora de moda. O que não se sustenta, no texto de Gelernter, é considerar "inversão de valores" o que simplesmente poderia ser entendido como mudança.
Só se eu considerasse natural, certo e legítimo, desde o "Gênesis", o padrão de masculinidade e de feminilidade representado pelos pais do Pimentinha ou de Will Robinson em "Perdidos no Espaço", como valor imutável da América o casamento no gênero do seriado "I Love Lucy", como inscrito por Deus nas Tábuas da Lei o mandamento de que não se deve instruir adolescentes sobre orgasmo, aí sim estaríamos vivendo uma "inversão de valores".
Uma mudança de comportamento não é inversão de valores. A partir do ponto de vista de Gelernter, pode-se concluir que no dia em que as mulheres passaram a usar calças compridas os valores da "América" começaram a se "inverter". Mas passemos à pena de morte.
Para Gelernter, hesita-se em aplicá-la porque há dúvidas demais sobre o que é culpa e inocência. Se o argumento do autor fosse correto, provavelmente o Unabomber estaria absolvido. Mas foi condenado à prisão perpétua. Parece-me razoável em matéria de certeza sobre a culpabilidade dele.
Não há "comunidade" com "valores morais" mais sólidos do que uma comunidade de linchadores. Os "valores" não se "inverteram" no Irã de Khomeini. O sujeito que acha que a terra é plana tem menos "dúvidas" do que um cientista comum.
De que "valores", afinal, estamos falando? Eu poderia argumentar do seguinte modo: qual o grande problema, afinal, de considerarmos o Unabomber um doente, em vez de um vilão? Certamente, não sabemos como tratar dessa doença. A prisão não irá recuperá-lo, imagino. Não se inventou coisa melhor. Mas ao advogar a pena de morte estamos apenas querendo matar a dúvida que existe dentro de nós; é o que fazem todos os fanáticos, a começar pelo próprio Unabomber.
Mas é claro que Gelernter não é um fanático. E aí surgem mais complicações de seu artigo. Para defender os "valores da comunidade", Gelernter ataca os intelectuais. Mas, para lamentar a corrupção moral generalizada da "América", supõe que intelectuais e "comunidade" partilham da mesma atitude. Defendendo a certeza moral, o artigo inteiro adota um tom de questionamento untuoso, supostamente reflexivo.
Invoca-se, a determinada altura, o nome de Kant como defensor da pena de morte, contra atitudes falsamente humanitárias e "sentimentais". Ora, não vejo nenhum sentimentalismo em torno do Unabomber. Na verdade, é precisamente o pensamento conservador ("antigamente éramos mais durões, antigamente os valores eram fixos, ninguém questionava") que peca pelo sentimentalismo.
Imagina-se uma "comunidade" que fosse mais "feliz" quando vigoravam os velhos valores. Só esse termo "comunidade" já é de causar náuseas. E se há algo capaz de levar os homens à maioridade, para lembrar também o velho Kant, é o inconformismo diante de crenças recebidas sem questionamento.
O que me parece interessante, no conservadorismo atual, é o uso que termina fazendo de todo um arsenal implícito de "esquerda". A crítica ao progresso, ao Iluminismo, à ciência etc., e a reação à estreiteza do pensamento do século 19 tiveram momentos altos no marxismo, em Foucault, na escola de Frankfurt, no pensamento antropológico. Mas todas essas críticas foram feitas em nome de mais conhecimento, mais razão, mais instabilidade nos sacrossantos "valores".
Cria-se um paradoxo. A autocrítica do Iluminismo passa a admitir um momento de medo; o desconforto intelectual daí resultante se inclina para o conservadorismo, mas calçado num tom "moderninho", ou melhor, "pós-moderninho". Um ceticismo de butique. O conservadorismo surge como novidade "avançada".
Esse ceticismo conservador quanto à razão e ao progresso gira, assim, em falso. Não se aparenta ao ato iluminista -onde a dúvida e o questionamento são passos no rumo de maior conhecimento- e sim a um "duvidar da dúvida", a um "relativismo absoluto" que só se aquieta quando defende o preconceito, o fanatismo e a feliz ignorância de nossos antepassados.



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