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DRAUZIO VARELLA
Amor de mãe
Para a mãe, todo filho é santo. Os outros podem considerá-lo sem-vergonha, de caráter
torpe, ladrão contumaz e assassino abominável. Ela nunca. Por
mais absurdo o ato por ele cometido, ela sempre encontrará desculpa, dirá que no fundo é bom
rapaz, dono de sentimentos nobres, e, se por acaso errou, foi culpa das más companhias.
A dedicação das mulheres aos
filhos não encontra paralelo no
comportamento masculino. Um
pai é capaz de romper relações
com os filhos, dizer-lhes que não o
procurem mais e não irá se arrepender. A mãe jamais conseguirá
fazê-lo.
As filas que se formam nas portas das cadeias para as visitas dos
finais de semana ilustram o que
acabamos de falar. Para cada dez
senhoras que chegam com sacolas
de supermercado carregadas de
refrigerante tamanho família e
com as comidas de que o filho gosta, aparece um pai para visitá-lo.
Anos atrás, uma dessas senhoras me disse a respeito do filho,
que havia matado cinco pessoas
numa chacina: "Dizem que o
meu menino fez coisas horríveis,
mas, quando olho nos olhos dele,
vejo ele pequenininho no meu colo, rindo, e não consigo acreditar
que seja verdade".
Talvez seja essa a principal estratégia de sobrevivência da
criança pequena: ter olhos encantadores e pele tão macia que dá
vontade de apertar. Dependentes
dos pais para as mais insignificantes tarefas, os bebês fazem da
beleza a arma irresistível para
atrair a atenção que exigem dia e
noite durante a demorada fase de
desenvolvimento.
Longos períodos de cuidados
com a prole são característicos de
todos os primatas. O cavalinho
acabado de nascer já sai trôpego,
um pássaro, aos 30 dias, consegue
voar, mas nos primatas a independência só será alcançada depois de muito tempo: uma criança leva um ano para começar a
andar, um filhote de orangotango
precisa de sete ou oito anos para
se aventurar sem a mãe pelos galhos das árvores e desaparecer na
floresta. Gorilas e chimpanzés só
na adolescência criam coragem
para deixar o grupo.
A vulnerabilidade da infância
criou forte pressão seletiva no
passado da espécie humana. Por
prováveis fatores de natureza social e sutis reações bioquímicas
que os hormônios sexuais estabelecem com os neurônios no cérebro, desde sempre coube à mulher
o peso maior do fardo que é cuidar dos filhos. Aceitamos esse fato
com tanta naturalidade que cobramos do amor materno uma
coerência jamais exigida dos homens.
Por exemplo, pai abandonar filho é comportamento aceito socialmente, considerado normal
hoje em dia, motivo até de orgulho para os que se gabam de seduzir muitas mulheres. Mãe que
abandona bebê na porta da igreja, ao contrário, é execrada. Por
quê? Se do pai que abandonou o
mesmo filho ninguém fala, por
que todos condenam a mãe?
É provável que a resposta esteja
nos mecanismos de seleção natural. Nossos antepassados machos
adotaram estratégias reprodutivas diferentes das estratégias das
fêmeas porque podiam ter um
número de filhos genéticos incomparavelmente maior do que
elas. Nossa estratégia é baseada
na ejaculação de centenas de milhões de espermatozóides. A delas, na produção de um único
óvulo por mês. São econômicas, a
gravidez lhes consome energia, e
os cuidados necessários para criar
o filho, muito mais.
Com base nessa fisiologia, os
machos primitivos vislumbraram
duas estratégias sexuais: fecundar o maior número possível de
fêmeas ou passar a vida restrito a
uma só. Embora pareça que os
primeiros levaram franca vantagem competitiva, não podemos
esquecer os riscos de tal opção: as
doenças sexualmente transmissíveis num mundo sem antibióticos
e a chance de ser assassinado por
um rival na disputa da parceira,
por exemplo. Além disso, sem o
pai por perto, a probabilidade de
sobrevivência de uma criança é
certamente menor.
O comportamento monogâmico chegou aos nossos dias porque,
se um casal mantém duas ou três
relações por semana, durante um
ano, em mais de 70% dos casos a
gravidez acontece. Se o casal continuar junto e investir energia dobrada na criação da família, a
possibilidade de sucesso reprodutivo aumentará significativamente. Nesse caso, devagar se vai mais
longe.
No lado feminino, levaram vantagem na competição nossas antepassadas, que se dedicaram de
corpo e alma à criação dos filhos e
dos netos quando viviam tempo
suficiente para tê-los. Num mundo inóspito como aquele, as mulheres desapegadas dos filhos não
conseguiram transmitir sua herança genética. Somos todos descendentes de mães exemplares na
tarefa de cuidar da prole, obededientes à ordem ancestral de
amar aos filhos sobre todas as coisas. É por isso que o povo diz:
amor, só de mãe!
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