São Paulo, Sexta-feira, 08 de Outubro de 1999
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MÚSICA ERUDITA CRÍTICA

Viena foi para ouvidos, alma, coração


ARTHUR NESTROVSKI
da Equipe de Articulistas

Uma orquestra dessas, num concerto desses, não é para ser ouvida só com os ouvidos: é para ser ouvida com a espinha, ou alma, ou inconsciente, ou coração.
Toda a beleza do som da Filarmônica de Viena ainda é pouca, para as grandezas maiores da música viva, ressoando na platéia viva de música. Seu concerto de anteontem, na Sala São Paulo, foi quase perfeito, talvez o grau mais elevado e humano da perfeição.
A beleza do som da Filarmônica é fabulosa, no sentido estrito do termo: tema de mitos e fábulas. Não são só os sopros e metais, de técnica idiossincrática. As cordas, também, criam uma memória nova para a palavra "violino".
Som e idéia se conjugaram na "Quarta Sinfonia" de Brahms (1833-97), regida com acentos menos melancólicos que o de hábito por Lorin Maazel. A "Quarta" parece, ainda mais do que as outras, uma sinfonia de câmara. Não só pelas texturas e o tratamento dos motivos, mas porque faz da platéia (como via Schoenberg) uma multidão de solitários, cada um revivendo "brahmsianamente" seus afetos.
"Parece um CD", comentava uma amiga, entusiasmada, no intervalo. Não parece. Compreende-se o que ela quis dizer: a orquestra é perfeita, com ataques perfeitos, nenhum deslize (ou quase nenhum: a trompa humanizou o ideal). Mas nenhum CD consegue reproduzir esse som, se espalhando pela platéia, nem muito menos a presença dos músicos. Música é isso; o resto é disco.
Passar de Brahms a Ravel (1875-1937) é um tanto estranho. Da "Quarta" para a "Rapsódia Espanhola", a distância é mais ou menos como a de Hamburgo a Mallorca. O ar é outro, a luz é outra, a língua é outra. Nada foi melhor do que a "Rapsódia" -é um alento pensar que isso é verdade mesmo sabendo que, aqui e ali, a Filarmônica vacilou um pouco. O solo de oboé, por exemplo, foi (para os padrões da orquestra) abaixo do padrão.
Mas as transparências e sedas de Ravel ganharam um tradutor predestinado, cheio de sol e sal, na figura desses senhores sóbrios de Viena.
Foi saudável passar da melancolia sexual de Brahms para a sexualidade melancólica de Ravel. Mas foi melhor ainda passar depois para a sexualidade sem melancolia do balé "O Pássaro de Fogo" de Stravinski (1882-1971). A "Rapsódia" tem aqui (na "Berceuse") sua maior homenagem, uma superação do que não se supera.
Contrabaixos tiveram ocasião de mostrar do que são capazes, e o contrafagote também. E o violoncelo, inexplicável, pôde dançar seu "pas de deux", inevitável, com a violina, inesquecível. Em plena luz da noite, uma felicidade.
Lorin Maazel é sempre um prazer de se ouvir e discreto de ver. Regeu tudo de cor, sem histrionismo, como quem tem a música na palma das mãos. Tem mesmo. Há seis anos, com a Orquestra de Pittsburgh, regeu em São Paulo a "Rapsódia" (que já gravara antes com a Orquestra de Paris). Seis anos depois, seu Ravel ficou mais vivido e mais leve. Mais "avienado": tranqüilo, sem perder a malícia; malicioso, sem perder a sinceridade.
No bis ("Daphnis et Chloé", de Ravel) e nos tris (valsas de Strauss), maestro e orquestra estavam claramente se divertindo, e nós também. Uma prévia do concerto do Ano Novo 2000.
Que orquestra. Que concerto. Música faz bem.


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