São Paulo, Sexta-feira, 08 de Outubro de 1999
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"A Hora da Estrela" volta à cidade grande


CRISTIAN AVELLO CANCINO
free-lance para a Folha

Macabéa caminha a esmo tropeçante pela vastidão de uma urbe opressora, indiferente aos desajeitados. Mas essa mesma cidade (estamos falando de São Paulo) é sentenciosa com quem não a compreende.
A cineasta Suzana Amaral debutou na direção contando essa história, adaptando "A Hora da Estrela", um dos grandes romances de Clarice Lispector, e compreendeu a cidade com angústia e inquietação que poderão ser sentidas a partir de hoje, no Espaço Unibanco de Cinema, que põe o poderoso "A Hora da Estrela" em cartaz até o dia 4 de novembro, no ciclo "Cinema e Literatura".
Marcélia Cartaxo, que viveu a retirante Macabéa e ganhou o Urso de Prata de melhor atriz no Festival de Berlim em 1986, encarna o desassossego -daqueles que migraram do Nordeste para a cidade grande- com gestos comedidos, olhar tímido, fazendo-se de assustada, mas nunca sem dignidade.
Macabéa deseja compreender o comportamento desbocado dos que a rodeiam -ouve a rádio Relógio Federal para isso- quer namorar, passear no metrô, o que lhe desata o sorriso.
O filme lembra "A Vida Sonhada dos Anjos". A França parece descobrir tardiamente, também com filmes como "O Ódio", o hiper-realismo que marcou o cinema brasileiro nas décadas passadas, quando nossos cineastas não se preocupavam com o Oscar. Era preciso conhecer o Brasil, e somente isso.
E aqui Macabéa aparece como uma tímida impertinente que nem mesmo consegue realizar com competência o trabalho de datilógrafa. Seu chefe diz, a certa altura: "Porra, se ainda fosse gostosa". É demitida, claro, no mundo normatizado de uma cidade como São Paulo não há lugar para os feios, que o lugar de sujos, desempregados e humildes é a rua.
Suzana Amaral, sabendo dessas intransigências, deixou-se levar por uma pulsão transformadora que teve gênese na experiência também dolorosa de Clarice Lispector, verdadeiramente uma nordestina, apesar de ter nascido na Ucrânia.
Durante seus últimos anos de vida (morreu em 1977), Clarice sentia nostalgia pelo Recife, onde passara a infância antes de se mudar para o Rio. Para matar a saudade, visitava a feira nordestina que ocorre aos domingos no bairro de São Cristóvão. Lá, se acalentava com o sotaque e aproveitava para criar mentalmente os diálogos ingênuos de Macabéa.
"Gauche" e inepta, Macabéa pede desculpas por tudo que faz, "pede desculpas por ocupar o espaço", escreveu Clarice. Alimenta-se de coca-cola e cachorro quente, "por que é barato", diz Marcélia "Macabéa" Cartaxo. Ainda assim, num espasmo de auto-piedade, motivada por uma colega que lhe pergunta se ser feia dói, procura uma cartomante (Fernanda Montenegro), que lhe anuncia um futuro de sonho, quando se casaria com um gringo, viraria, enfim, uma estrela.
Para os espíritos sensíveis, o filme pode ser angustiante. A cidade não reservou porções de felicidade para Macabéa, apenas instantes raquíticos de alegria. As saídas para ela são os sonhos, mas quem sonha muito é atropelado pelos preconceitos, pela cidade sem trégua para as hostilidades.


Filme: A Hora da Estrela
Direção: Suzana Amaral
Com: Marcélia Cartaxo e José Dumont
Quando: hoje, às 14h10, no Espaço Unibanco 4


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