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GASTRONOMIA
"Huitlacoche" vale uma deliciosa cantada
NINA HORTA
Colunista da Folha
Minha sócia e eu fomos comer
um cozido num restaurante antigo da cidade para lembrar o gosto
e ver a quantas andava a mostarda de Cremona.
Era um almoço de dia de semana, chocho, poucas mesas ocupadas, homens de negócio conversando dólares sobre o prato de
massa e um ou outro vago turista
caído ali por acaso, hospedado no
hotel.
Na mesa ao lado da nossa sentava-se um casal moço, ele de terno,
bonitão, ela de roupeta de trabalho e óculos.
Enquanto beliscávamos o patê
do couvert ouvíamos só a voz do
homem, intensa mas monocórdica, e algumas tímidas intervenções da mulher. Ele falava inglês
com um leve sotaque a la Arnold
Schwarzenegger. Ela ouvia. Nós
pesquisávamos o cozido.
Naquele dia o cozido, ótimo em
outros tempos, estava ruim. Era
um prato triste, de hospital, pálido e frouxo, um arremedo do que
fora. Desoladas, conversávamos
abobrinhas.
De repente, ouvi distintamente
uma palavra que se definiu, clara,
iluminada, saída daquela zoeira
do Schwarzenegger, a palavra
"huitlacoche". Todos os meus ouvidos da nuca se alertaram. "Huitlacoche"! Só eu sabia o que era
aquilo! Impossível que um executivo em viagem introduzisse na
conversa esta palavra mirabolante, tão específica, tão ligada à comida. Parei de mastigar, parei de
criticar o cozido, torci o pescoço
com naturalidade e fiz um olhar
distraído, dirigido ao infinito de
quem não está ouvindo conversa
de ninguém.
"Cuitlacoche" ou "huitlacoche"
é um fungo prateado por fora,
preto por dentro, que dá nas espigas de milho verde e é muito apreciado no México.
É uma praga, uma excrescência
da espiga que se deforma, cresce e
faz com que o milho se abra numa
explosão precoce. O nome botânico é Ustilago maydis e o nome
dado pelos astecas, é "cuitlatl"
(excremento) e "cochtli" (adormecido).
Nos Estados Unidos e na Inglaterra, (na França não sei), é uma
das novas comidas descobertas
pelo mundo gastronômico. Um
cocô dormido, dirão os céticos,
como os astecas. Não, mais uma
jóia de exotismo, um cogumelo
raro, uma coisa que não se planta,
que brota sem que se espere, uma
trufa nas barbas loiras do milho,
este camponês.
Ao cozinhar, solta uma tinta
preta, muito, muito saborosa. E
ali, bem ao nosso lado, um homem com cara de economista sabia o que era "huitlacoche". E falava.
-Fiz um "chowder". Você sabe
o que é um "chowder"? Digamos
que é uma sopa, para simplificar.
Uma especialidade do Maine. Fiz
um "chowder" de milho. Comecei pondo uns pedaços de banha
de barriga de porco no caldeirão.
Poucos, para não engordurar demais o caldo. Esperei que encolhessem, juntei uma cebola e duas
batatas picadinhas.
-Huum...
-Calma aí. Mais um litro de
leite, grãos de 12 espigas raladas,
mais os sabugos, os sabugos para
dar gosto, tirei depois. Não se pode deixar ferver. É só aquele fogo
baixinho.
Schwarzenegger pontificava. E
nós, cozinheiras, aos poucos durante a arenga que foi longa, detalhada, fomos nos apaixonando
furiosamente pelo homem que
tentava seduzir a mulher com
uma receita de sopa.
Era dos nossos! E que ciúme daquela menina desenxabida que só
dizia hum, hum, fascinada pelos
dentes e amígdalas do falante,
uma bobinha ignorante que não
sabia o que era "huitlacoche".
-O tempero é só sal e pimenta-do-reino. Tem gosto de horta,
fresco, doce, forte, e aí não aguentei, pirateei, sorrateiramente contrabandeei e juntei ("I smuggled
in") um lote de "huitlacoche" ao
caldo. Prato fundo, um quadradinho de manteiga por cima, pão
preto, você nem imagina.
Schwarzenegger salivava e quase engoliu a menina ali, na hora,
com sal, pimenta e "huitlacoche".
Foi a primeira cantada culinária
que ouvi. Pela cara de sapo hipnotizado pela cobra grande da menina, acho que funcionou.
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