São Paulo, Sexta-feira, 08 de Outubro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

GASTRONOMIA

"Huitlacoche" vale uma deliciosa cantada


NINA HORTA
Colunista da Folha

Minha sócia e eu fomos comer um cozido num restaurante antigo da cidade para lembrar o gosto e ver a quantas andava a mostarda de Cremona.
Era um almoço de dia de semana, chocho, poucas mesas ocupadas, homens de negócio conversando dólares sobre o prato de massa e um ou outro vago turista caído ali por acaso, hospedado no hotel.
Na mesa ao lado da nossa sentava-se um casal moço, ele de terno, bonitão, ela de roupeta de trabalho e óculos.
Enquanto beliscávamos o patê do couvert ouvíamos só a voz do homem, intensa mas monocórdica, e algumas tímidas intervenções da mulher. Ele falava inglês com um leve sotaque a la Arnold Schwarzenegger. Ela ouvia. Nós pesquisávamos o cozido.
Naquele dia o cozido, ótimo em outros tempos, estava ruim. Era um prato triste, de hospital, pálido e frouxo, um arremedo do que fora. Desoladas, conversávamos abobrinhas.
De repente, ouvi distintamente uma palavra que se definiu, clara, iluminada, saída daquela zoeira do Schwarzenegger, a palavra "huitlacoche". Todos os meus ouvidos da nuca se alertaram. "Huitlacoche"! Só eu sabia o que era aquilo! Impossível que um executivo em viagem introduzisse na conversa esta palavra mirabolante, tão específica, tão ligada à comida. Parei de mastigar, parei de criticar o cozido, torci o pescoço com naturalidade e fiz um olhar distraído, dirigido ao infinito de quem não está ouvindo conversa de ninguém.
"Cuitlacoche" ou "huitlacoche" é um fungo prateado por fora, preto por dentro, que dá nas espigas de milho verde e é muito apreciado no México.
É uma praga, uma excrescência da espiga que se deforma, cresce e faz com que o milho se abra numa explosão precoce. O nome botânico é Ustilago maydis e o nome dado pelos astecas, é "cuitlatl" (excremento) e "cochtli" (adormecido).
Nos Estados Unidos e na Inglaterra, (na França não sei), é uma das novas comidas descobertas pelo mundo gastronômico. Um cocô dormido, dirão os céticos, como os astecas. Não, mais uma jóia de exotismo, um cogumelo raro, uma coisa que não se planta, que brota sem que se espere, uma trufa nas barbas loiras do milho, este camponês.
Ao cozinhar, solta uma tinta preta, muito, muito saborosa. E ali, bem ao nosso lado, um homem com cara de economista sabia o que era "huitlacoche". E falava.
-Fiz um "chowder". Você sabe o que é um "chowder"? Digamos que é uma sopa, para simplificar. Uma especialidade do Maine. Fiz um "chowder" de milho. Comecei pondo uns pedaços de banha de barriga de porco no caldeirão. Poucos, para não engordurar demais o caldo. Esperei que encolhessem, juntei uma cebola e duas batatas picadinhas.
-Huum...
-Calma aí. Mais um litro de leite, grãos de 12 espigas raladas, mais os sabugos, os sabugos para dar gosto, tirei depois. Não se pode deixar ferver. É só aquele fogo baixinho.
Schwarzenegger pontificava. E nós, cozinheiras, aos poucos durante a arenga que foi longa, detalhada, fomos nos apaixonando furiosamente pelo homem que tentava seduzir a mulher com uma receita de sopa.
Era dos nossos! E que ciúme daquela menina desenxabida que só dizia hum, hum, fascinada pelos dentes e amígdalas do falante, uma bobinha ignorante que não sabia o que era "huitlacoche".
-O tempero é só sal e pimenta-do-reino. Tem gosto de horta, fresco, doce, forte, e aí não aguentei, pirateei, sorrateiramente contrabandeei e juntei ("I smuggled in") um lote de "huitlacoche" ao caldo. Prato fundo, um quadradinho de manteiga por cima, pão preto, você nem imagina.
Schwarzenegger salivava e quase engoliu a menina ali, na hora, com sal, pimenta e "huitlacoche".
Foi a primeira cantada culinária que ouvi. Pela cara de sapo hipnotizado pela cobra grande da menina, acho que funcionou.


Texto Anterior: Abba falso não vale o preço do real
Próximo Texto: Receitas de Mellão: A cara de todos nós
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.