São Paulo, Sexta-feira, 08 de Outubro de 1999
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RECEITAS DO MELLÃO

A cara de todos nós


HAMILTON MELLÃO JUNIOR
Colunista da Folha

E eis-me aqui, coçando os artolhos, defronte deste marzão da praia José do Menino. Pardon se não me expresso bem em brasileiro. "Ni même en français." Há 68 anos um deus sacana me encarnou em Guadalupe, uma ilha de bananas.
Já estava ficando uma quando pulei num vapeur atrás de glória e dinheiro. Acho que me confundi e, trocando as Américas, vim parar na do Sul, Rio.
Comecei a vida vendendo periquitos aos turistas e garantindo que virariam faladores papagaios. Mas conclui que assim não faria fortune e caí para São Paulo. Conheci um francês abestalhado que tinha um restaurante, adorava meu falar criolo e pagava para me ver nu.
Tentei aprender a ser garçon, mas, por inaptidão, acabei na cuisine. Um dia o babaca enrustido fugiu do Brasil com a mulher, contaminada pela febre do tropique -que dá vontade de conhecer biblicamente qualquer homem.
Consegui meu primeiro restaurant. Na casa, sobramos eu e Fiódor, o mais bêbado dos garçons russos. Para comemorar, fizemos uma receita da mãe dele que entendi chamar-se strogonoff: filé mignon e cebolas puxados na manteiga com creme azedo e mais um tempero que ele não estava em condições de saber qual era. Coloquei creme de leite, ketchup para cor e champignon em conserva para sofisticar. Para acompanhar, arroz branco e batatas fritas. Sucesso. São Paulo comia na minha mão.
O jantar incluía uma entrée obrigatória: camarões com sauce mayonnaise e abacaxi. Depois, meu strogonoff e um marron glacé que o povo comeu por 15 anos e não descobriu que era feito com batata doce. Tudo regado a vinho rosé gelado. As pessoas pagavam sorridentes por terem compartilhado do lugar, da comida e de mim. Superbe!
Em 1967, foi a última vez que meu nome entrou na lista dos dez mais elegantes. As notas sobre o restaurante começaram a rarear no Ibrahim Sued e no Tavares de Miranda. O dinheiro daquela época evaporou com cavalos lerdos e mulheres rápidas.
Agora, passo meus dias olhando o mar. Parece que ele me chama de volta para a Ilha. Vez ou outra, cruzo com filhos de antigos fregueses junto com seus filhos, igualmente falidos. Fogem de mim como de um lazarento. Acho que trago, tatuada na cara, a mediocridade de todos nós.

E-mail: mellao@uol.com.br


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