São Paulo, Sexta-feira, 08 de Outubro de 1999
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CRÍTICA

Nada se perde, tudo se transmite


CÁSSIO STARLING CARLOS
Editor-adjunto de Cotidiano

O último Almodóvar. Assim se refere o público a "Tudo sobre Minha Mãe", com a mesma naturalidade que há 20 anos se referia à estréia de um novo Fellini.
Poucos, muito poucos, cineastas em atividade conservam esse tipo de privilégio. A justificativa estética desse "direito" atravessa "Tudo sobre Minha Mãe".
Difícil não reconhecer ali o que chamamos de universo, com seus mundos particulares, pelo qual se reconhece uma marca ou, como dizem os franceses, um autor.
Desde "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos", o primeiro sucesso internacional de Almodóvar, esse universo predominantemente habitado por mulheres foi se tornando, a cada filme, mais reconhecível.
"Os grandes estrategistas militares são homens, mas as mulheres são as grandes estrategistas da vida cotidiana", se justifica Almodóvar em uma das entrevistas sobre o filme. Como não há guerras (no sentido militar) todos os dias, resta a elas o papel de dominar.
"Tudo sobre Minha Mãe" não contém nenhum plano que não esteja povoado, dominado por mulheres. Os homens existem, mas sua presença é fugaz, senão desprezível, com exceção dos Estebán -o filho, o pai e o bebê.
Quando o mundo masculino aparece é imediatamente convertido, sugado por uma "feminilidade" extrema. O pai, emblema da "superioridade" masculina, por exemplo, já virou um travesti e hoje atende pelo nome de Lola e está à beira da morte.
O título faz referência direta a "All about Eve" ("A Malvada", no Brasil), filme que Manuela assiste ao lado do Estebán-filho. A Eve do clássico de Joseph Mankiewicz era uma versão má do arquétipo feminino da Eva bíblica, dominada pela inveja e cobiça.
A Eva de Almodóvar é sua antítese. Manuela é sempre vítima, mas nunca se ressente. O sentimento que a guia atende pelo nome de generosidade.
A idéia central do filme é essa disponibilidade para doar. A idéia de transplante duplica e completa a da doação.
Estebán-filho morre, e Manuela doa seu coração -ocasião para uma sequência de tirar o fôlego, na qual Almodóvar move a câmera em direção ao corpo do receptor, mira seu coração, a imagem escurece, atravessa um túnel e um magnífico plano aéreo de Barcelona enche nossos olhos.
Na segunda parte, em Barcelona, Manuela se transforma em uma espécie de missionária sem Deus, trazendo à tona outras tantas sofredoras -atrizes, drogadas, freiras perdidas e travestis- e as agrupa em torno de sua força.
Em "Tudo sobre Minha Mãe", nenhuma perda é absoluta. Nada se perde, tudo se transmite, seria uma fórmula capaz de resumi-lo. Pois tudo aqui existe para ser transmitido, seja um coração, seja um vírus mortal.


Avaliação:     

Filme: Tudo sobre Minha Mãe
Direção: Pedro Almodóvar
Produção: Espanha/França, 1999
Com: Cecilia Roth, Eloy Azorín, Carlos Lozano, Toni Cantó, Antonia San Juan
Onde: a partir de hoje, nos cines Espaço Unibanco 1, Eldorado 6 e circuito



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