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CRÍTICA
Nada se perde, tudo se transmite
CÁSSIO STARLING CARLOS
Editor-adjunto de Cotidiano
O último Almodóvar. Assim se
refere o público a "Tudo sobre
Minha Mãe", com a mesma naturalidade que há 20 anos se referia
à estréia de um novo Fellini.
Poucos, muito poucos, cineastas em atividade conservam esse
tipo de privilégio. A justificativa
estética desse "direito" atravessa
"Tudo sobre Minha Mãe".
Difícil não reconhecer ali o que
chamamos de universo, com seus
mundos particulares, pelo qual se
reconhece uma marca ou, como
dizem os franceses, um autor.
Desde "Mulheres à Beira de um
Ataque de Nervos", o primeiro
sucesso internacional de Almodóvar, esse universo predominantemente habitado por mulheres foi se tornando, a cada filme,
mais reconhecível.
"Os grandes estrategistas militares são homens, mas as mulheres são as grandes estrategistas da
vida cotidiana", se justifica Almodóvar em uma das entrevistas sobre o filme. Como não há guerras
(no sentido militar) todos os dias,
resta a elas o papel de dominar.
"Tudo sobre Minha Mãe" não
contém nenhum plano que não
esteja povoado, dominado por
mulheres. Os homens existem,
mas sua presença é fugaz, senão
desprezível, com exceção dos Estebán -o filho, o pai e o bebê.
Quando o mundo masculino
aparece é imediatamente convertido, sugado por uma "feminilidade" extrema. O pai, emblema
da "superioridade" masculina,
por exemplo, já virou um travesti
e hoje atende pelo nome de Lola e
está à beira da morte.
O título faz referência direta a
"All about Eve" ("A Malvada", no
Brasil), filme que Manuela assiste
ao lado do Estebán-filho. A Eve
do clássico de Joseph Mankiewicz
era uma versão má do arquétipo
feminino da Eva bíblica, dominada pela inveja e cobiça.
A Eva de Almodóvar é sua antítese. Manuela é sempre vítima,
mas nunca se ressente. O sentimento que a guia atende pelo nome de generosidade.
A idéia central do filme é essa
disponibilidade para doar. A idéia
de transplante duplica e completa
a da doação.
Estebán-filho morre, e Manuela
doa seu coração -ocasião para
uma sequência de tirar o fôlego,
na qual Almodóvar move a câmera em direção ao corpo do receptor, mira seu coração, a imagem
escurece, atravessa um túnel e um
magnífico plano aéreo de Barcelona enche nossos olhos.
Na segunda parte, em Barcelona, Manuela se transforma em
uma espécie de missionária sem
Deus, trazendo à tona outras tantas sofredoras -atrizes, drogadas, freiras perdidas e travestis-
e as agrupa em torno de sua força.
Em "Tudo sobre Minha Mãe",
nenhuma perda é absoluta. Nada
se perde, tudo se transmite, seria
uma fórmula capaz de resumi-lo.
Pois tudo aqui existe para ser
transmitido, seja um coração, seja
um vírus mortal.
Avaliação:
Filme: Tudo sobre Minha Mãe
Direção: Pedro Almodóvar
Produção: Espanha/França, 1999
Com: Cecilia Roth, Eloy Azorín, Carlos
Lozano, Toni Cantó, Antonia San Juan
Onde: a partir de hoje, nos cines Espaço
Unibanco 1, Eldorado 6 e circuito
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