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CARLOS HEITOR CONY
De como não sentei na cadeira de Bilac
Aos 20 anos, eu sabia latim, mas
não sabia tomar um bonde. Ônibus então era mais complicado;
afinal, bonde andava sobre trilhos, ônibus andava onde queria,
cumprindo itinerários complicadíssimos. Deixara o seminário
com odes de Horácio na cabeça,
era capaz de recitar trechos inteiros do ""Pro Milone" de Cícero.
Mas, nas coisas práticas e necessárias, era uma lástima.
Sabendo que o filho não dera
para padre, o pai achou que eu
devia ser jornalista, função naquela época destinada àqueles
que não davam certo em nenhuma outra. O sujeito ia trabalhar
num jornal como alternativa desesperada, após quebrar a cara
em outros ofícios que exigiam
mais sabedoria e disciplina.
As redações estavam cheias de
médicos, advogados, professores,
políticos de diversas origens e finalidades, alguns até que davam
certo na função principal, mas enchiam o tempo com um bico mal-remunerado, que não exigia habilitação específica, nem mesmo a
de escrever razoavelmente.
Era comum a existência daqueles tipos que Lima Barreto descreveu em suas ""Recordações do Escrivão Isaías Caminha". O cidadão era considerado entre os médicos por ser bom jornalista e respeitado entre os jornalistas por ser
um bom médico.
Foi assim que, naquela tarde,
após negociações embrulhadíssimas entre o pai e um secretário de
jornal, subi as combalidas escadas
da "Gazeta de Notícias", jornal
que já tivera sua glória, endereço
famoso na rua do Ouvidor, de cujas sacadas José do Patrocínio levantara as massas a favor da
Abolição.
Um tópico da "Gazeta" derrubava ministros, falia bancos, consagrava um ator, provocava uma
revolução. Durante a campanha
de Canudos, houve um dia em
que morreu mais gente sob as sacadas do jornal do que no arraial
do Conselheiro.
O jornal vivia de seu passado, e
eu queria viver um futuro que,
aliás, nunca tive. Não podíamos
dar certo. Apresentei-me ao tal secretário, que se chamava Mâncio
-jamais conheci outro Mâncio,
de maneira que não lhe guardei o
nome todo, por isso o Mâncio me
bastava porque o julgava único e
suficiente.
Era um paraense que passava o
dia corrigindo as besteiras que os
outros escreviam. Nas horas vagas, fazia versos -função mais
do que desculpável naquele tempo. Todos, de alguma forma, faziam versos mais ou menos por
obrigação existencial. Era uma
forma de superar a mediocridade
da vida que se levava.
Mâncio tinha na página um pequeno espaço destinado a um soneto diário que ele próprio escrevia sob o título genérico de "Perfí...dias", assim mesmo, eram perfis de adversários ou desafetos do
dono do jornal. Estava exausto, já
esculhambara metade dos políticos, banqueiros e pessoas gradas
do Rio de então. E, como o dono
do jornal variava de adversários e
desafetos conforme as circunstâncias, a outra metade não perdia
por esperar.
Ele me olhou penalizado, tão jovem, sabendo latim (o pai fazia
questão de proclamar essa minha
única e problemática qualidade)
e ali à sua frente, aguardando
uma missão que fosse útil a mim e
necessária à nação. Como não lhe
passasse pela cabeça que eu não
soubesse fazer sonetos, pediu-me
que fizesse o ""Perfí...dias" do dia
seguinte. E deu-me o tema: Carlos
Lacerda, que naqueles dias fazia
campanha contra o prefeito que
isentara o jornal de não sei quantas multas e emolumentos vários.
Apesar da pouca idade, eu já fizera muita coisa reprovável nos
meus 20 anos, mas nunca me
atrevera a fazer um soneto. Os
maiores criminosos, capazes de
violar sepulturas, violentar freiras
e degolar criancinhas, conservam
sempre um limite moral. Por
exemplo, não comem carne nas
sextas-feiras da Quaresma.
Recebida a missão, procurei um
lugar para desovar os 14 versos
dos quais dependeria o meu futuro. À frente do Mâncio havia uma
mesa e cadeira empoeiradas e vazias, que me pareceram apropriadas para a função de fazer um soneto contra o Carlos Lacerda, que
eu nem sabia ao certo quem era,
nem o que fazia.
Houve um brado retumbante
na redação. O próprio Mâncio levantou-se, vermelho de indignação: ""O que é isso? Esta cadeira é
do Olavo Bilac!". Levei um susto.
Pelo que imaginava, Bilac havia
morrido há anos, mas tive a sensação de que de repente ele iria
surgir, vindo da rua ou do banheiro, para sentar ali, espanar a
mesa e fazer um daqueles sonetos
que lhe deram glória.
Pasmo, tendo iniciado tão mal
minha carreira de jornalista e
sem esperança de me recuperar às
custas de um soneto imortal, lá fui
eu para os fundos da redação,
junto ao pessoal do turfe. Vencida
a primeira dificuldade, logo tive
outra: teria de encontrar uma rima para ""Lacerda" e a única que
eu sabia era impublicável nos jornais daquele tempo.
Mesmo assim, desovei os 14 versos que me garantiram, senão um
futuro, ao menos um sanduíche
de salame com caldo de cana, que
o próprio Mâncio me pagou, numa pastelaria da rua Senhor dos
Passos.
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