São Paulo, Sexta-feira, 08 de Outubro de 1999
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CARLOS HEITOR CONY

De como não sentei na cadeira de Bilac

Aos 20 anos, eu sabia latim, mas não sabia tomar um bonde. Ônibus então era mais complicado; afinal, bonde andava sobre trilhos, ônibus andava onde queria, cumprindo itinerários complicadíssimos. Deixara o seminário com odes de Horácio na cabeça, era capaz de recitar trechos inteiros do ""Pro Milone" de Cícero. Mas, nas coisas práticas e necessárias, era uma lástima.
Sabendo que o filho não dera para padre, o pai achou que eu devia ser jornalista, função naquela época destinada àqueles que não davam certo em nenhuma outra. O sujeito ia trabalhar num jornal como alternativa desesperada, após quebrar a cara em outros ofícios que exigiam mais sabedoria e disciplina.
As redações estavam cheias de médicos, advogados, professores, políticos de diversas origens e finalidades, alguns até que davam certo na função principal, mas enchiam o tempo com um bico mal-remunerado, que não exigia habilitação específica, nem mesmo a de escrever razoavelmente.
Era comum a existência daqueles tipos que Lima Barreto descreveu em suas ""Recordações do Escrivão Isaías Caminha". O cidadão era considerado entre os médicos por ser bom jornalista e respeitado entre os jornalistas por ser um bom médico.
Foi assim que, naquela tarde, após negociações embrulhadíssimas entre o pai e um secretário de jornal, subi as combalidas escadas da "Gazeta de Notícias", jornal que já tivera sua glória, endereço famoso na rua do Ouvidor, de cujas sacadas José do Patrocínio levantara as massas a favor da Abolição.
Um tópico da "Gazeta" derrubava ministros, falia bancos, consagrava um ator, provocava uma revolução. Durante a campanha de Canudos, houve um dia em que morreu mais gente sob as sacadas do jornal do que no arraial do Conselheiro.
O jornal vivia de seu passado, e eu queria viver um futuro que, aliás, nunca tive. Não podíamos dar certo. Apresentei-me ao tal secretário, que se chamava Mâncio -jamais conheci outro Mâncio, de maneira que não lhe guardei o nome todo, por isso o Mâncio me bastava porque o julgava único e suficiente.
Era um paraense que passava o dia corrigindo as besteiras que os outros escreviam. Nas horas vagas, fazia versos -função mais do que desculpável naquele tempo. Todos, de alguma forma, faziam versos mais ou menos por obrigação existencial. Era uma forma de superar a mediocridade da vida que se levava.
Mâncio tinha na página um pequeno espaço destinado a um soneto diário que ele próprio escrevia sob o título genérico de "Perfí...dias", assim mesmo, eram perfis de adversários ou desafetos do dono do jornal. Estava exausto, já esculhambara metade dos políticos, banqueiros e pessoas gradas do Rio de então. E, como o dono do jornal variava de adversários e desafetos conforme as circunstâncias, a outra metade não perdia por esperar.
Ele me olhou penalizado, tão jovem, sabendo latim (o pai fazia questão de proclamar essa minha única e problemática qualidade) e ali à sua frente, aguardando uma missão que fosse útil a mim e necessária à nação. Como não lhe passasse pela cabeça que eu não soubesse fazer sonetos, pediu-me que fizesse o ""Perfí...dias" do dia seguinte. E deu-me o tema: Carlos Lacerda, que naqueles dias fazia campanha contra o prefeito que isentara o jornal de não sei quantas multas e emolumentos vários.
Apesar da pouca idade, eu já fizera muita coisa reprovável nos meus 20 anos, mas nunca me atrevera a fazer um soneto. Os maiores criminosos, capazes de violar sepulturas, violentar freiras e degolar criancinhas, conservam sempre um limite moral. Por exemplo, não comem carne nas sextas-feiras da Quaresma.
Recebida a missão, procurei um lugar para desovar os 14 versos dos quais dependeria o meu futuro. À frente do Mâncio havia uma mesa e cadeira empoeiradas e vazias, que me pareceram apropriadas para a função de fazer um soneto contra o Carlos Lacerda, que eu nem sabia ao certo quem era, nem o que fazia.
Houve um brado retumbante na redação. O próprio Mâncio levantou-se, vermelho de indignação: ""O que é isso? Esta cadeira é do Olavo Bilac!". Levei um susto. Pelo que imaginava, Bilac havia morrido há anos, mas tive a sensação de que de repente ele iria surgir, vindo da rua ou do banheiro, para sentar ali, espanar a mesa e fazer um daqueles sonetos que lhe deram glória.
Pasmo, tendo iniciado tão mal minha carreira de jornalista e sem esperança de me recuperar às custas de um soneto imortal, lá fui eu para os fundos da redação, junto ao pessoal do turfe. Vencida a primeira dificuldade, logo tive outra: teria de encontrar uma rima para ""Lacerda" e a única que eu sabia era impublicável nos jornais daquele tempo.
Mesmo assim, desovei os 14 versos que me garantiram, senão um futuro, ao menos um sanduíche de salame com caldo de cana, que o próprio Mâncio me pagou, numa pastelaria da rua Senhor dos Passos.



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