São Paulo, Quarta-feira, 08 de Dezembro de 1999


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MARCELO COELHO
Proibição das drogas é obra de drogados

Leio na revista "Veja" desta semana que o tráfico de cocaína é a atividade mais lucrativa do mundo: "Nenhum outro negócio, lícito ou ilícito, dá uma taxa de retorno de até 10.000%", diz a reportagem de Alexandre Secco.
Será que, com esse cálculo simples, já não está tudo explicado? A mim, pelo menos, fica evidente que, quanto mais se tenta reprimir o tráfico, mais lucrativo ele se torna; e nenhuma repressão inibe o interesse dos audaciosos pelo lucro ou dos dependentes pela cocaína.
Um amigo italiano, médico que veio para o Brasil na década de 50, conta suas experiências de moço rico, em Gênova, durante a guerra. Naquela época, reprimia-se o mercado negro com a pura e simples pena de morte. "Pois bem", disse-me ironicamente o velho italiano, "não houve dia, em minha casa, em que faltasse manteiga." Artigo que chegava à sua casa pelo câmbio negro, punido com a morte.
De resto, por que não proíbem a manteiga? Deve haver alguma estatística responsabilizando o colesterol por muito mais mortes do que a cocaína.
O problema não é, claramente, de "saúde pública". O álcool e o cigarro são drogas legalizadas. O que a cocaína ou a maconha têm de mais perigoso?
Talvez representem, apenas, uma "reserva de mercado" para policiais, investigadores, juízes ou militares, a quem o poder corruptor do tráfico é capaz de oferecer vantagens.
Não vejo saída mais sensata do que a de liberar o consumo de drogas. O paralelo com a Lei Seca é muito banal, mas não tenho argumentos em contrário. Proibindo-se o álcool, criam-se corrupção e organizações mafiosas. O mesmo ocorre com a cocaína.
Será que a cocaína é pior que o álcool? Para o motorista, por exemplo? Não sei. Será que a maconha é pior que o cigarro? Sei de muita gente que morre devido ao tabagismo; desconheço os mortos da maconha.
O argumento acima, contudo, é capcioso. Pode conduzir tanto à conclusão de que devemos proibir tudo -do cigarro ao crack- quanto à idéia de que devemos liberar tudo -da maconha ao LSD. Criticar as incoerências da lei pode levar igualmente a um rigorismo total ou a um liberalismo completo.
Na dúvida, opto por um liberalismo completo. Meu primeiro argumento é o de que nunca irão proibir novamente as bebidas alcoólicas; logo, rigores nesse assunto parecem descartáveis.
Meu segundo argumento é o de que tudo, na verdade, é capaz de viciar. Quantas mortes não se devem ao consumo excessivo de açúcar, por exemplo? Seria o caso de proibir o açúcar?
De minha parte, experimentei cocaína umas quatro ou cinco vezes. Essa droga não corresponde ao que se espera de uma droga: ausência do mundo, inconsciência, falta de culpa, fantasia. Teve em mim o efeito de acelerar o tempo: eu piscava os olhos, e duas horas tinham passado. Seu poder excitante acarretava uma contrapartida muito incômoda: uma espécie de mal-estar nas pernas, do gênero que se sente em viagens demoradas de avião. Os músculos não relaxam, senti um contrapelo na carne, uma aflição ácida nos nervos.
É possível que a cocaína exerça, sobre outros organismos, efeitos de que nem desconfio. Tenho certeza, entretanto, do seguinte fenômeno: a adição, o vício, a dependência que uma droga produz não depende de algum segredo químico que exista dentro dela. O dependente de uma droga (não sei no caso do crack) está doente de outra coisa, está doente de si mesmo, não da substância que consome.
O que não consigo entender é o medo com relação aos poderes da cocaína e da maconha, se comparado à grande tolerância que se tem diante do álcool e do cigarro. A cocaína pode dar um incremento de competitividade ao jovem executivo; a maconha talvez confira equilíbrio e bonomia ao vestibulando com espinhas, diminuindo o horror que temos à sua agressividade natural, que invejamos, feita de testosterona pura.
O que existe, no horror a drogas como cocaína e maconha e na tolerância frente ao álcool e ao cigarro, é talvez uma rivalidade geracional; a desconfiança mítica de que com determinados produtos químicos os jovens tenham acesso a prazeres que desconhecemos.
Ridículas as iniciativas que apostam, contra as drogas, no "esclarecimento" da juventude. Esse suposto "esclarecimento" não é resposta ao problema real, que é o de legalizar ou não. Legais, o álcool e o cigarro são objeto de campanhas muito eficazes a respeito de seus malefícios. Cocaína e maconha não precisam ser proibidas para que se "esclareça" o usuário.
Não; a proibição não faz sentido. É irracional. Deve ter sido obra de drogados.


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