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Crítica/"Sexo e Amizade"
Sant'Anna leva crise de valores à literatura
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Lançada em 1999, a novela "Sexo", de André Sant'Anna, ajudou a consolidar a reputação do autor como um dos mais talentosos e
originais de sua geração. O texto foi reeditado neste volume,
ao lado de novas produções, o
que nos ajuda a entender a trajetória particular do ficcionista.
"Sexo" arma-se por meio de
frases diretas, sem rufos, e sentenças de tom e sintaxe monocórdios. Em vez de fazer uso de
pronomes, por exemplo, o escritor repete o clichê com que
identifica o personagem: "A enxaqueca da Gorda Com Cheiro
de Perfume Avon só passava
quando a Gorda Com Cheiro
de Perfume Avon tomava Aspirina importada dos Estados
Unidos".
A ação se reduz a banalidades
do cotidiano, anunciadas de alguma forma pela música ordinária tocada no elevador onde
se acham várias dessas figuras
na cena de abertura. Mesmo os
episódios e pensamentos sobre
o sexo soam, nesse contexto,
alienado, prosaicos, frios, destituídos de qualquer traço de humanidade.
O objetivo, sem dúvida, é satírico. A leitura torna-se difícil,
não porque o texto seja complexo, mas porque sua simplicidade asfixiante e o emprego recorrente da repetição produzem no leitor o mesmo "tedium
vitae" que anima (ou desanima?) os personagens.
Caracterização dos tipos
Muita coisa mudou nos procedimentos de Sant'Anna desde então, embora o cerne existencial, ou ausência dele, mantenha-se de lá para cá. Os estereótipos sociais, por exemplo.
O clichê dos epítetos transfere-se agora para a caracterização dos tipos, facilmente identificáveis: o empresário do Audi
vermelho, a mulher bonita, a
produtora de TV.
Cada um deles, como que
criado em estereotipia, reproduz um discurso igualmente
estereotipado, em geral preconceituoso e de viés reacionário. Cada um elege um ou mais
antagonistas, contra o qual
vitupera: o povo, os comunistas, a mulher (que dirige), o
maconheiro, o intelectual, o
hippie etc.
Esses discursos se manifestam através do já consagrado
método do fluxo de consciência. Esse monólogo interior a
um tempo revela o personagem
e estampa sua limitação. Como
em "O Importado Vermelho de
Noé", o extraordinário conto
que inaugura o volume, a torrente de chavões também os
afoga -até literalmente.
De onde vem essa linguagem
vazia, essa opacidade, essa
tipificação que André Sant'Anna representa e desmonta
com idêntica virulência? Uma
dica parece vir de "Sexo",
quando o narrador explica
que determinada revista se
destina a "adolescentes do sexo
feminino, das classes B e
C+, virgens, que usam roupas
de grife".
O perfil teria sido pelo departamento de mídia de uma agência de publicidade. Se nossa sociedade se reduz a estatísticas e
perfis para uso de empresas de
propaganda, que assim ajudam
seus clientes a vender mais
produtos, que dizer dos indivíduos, os (digamos) compradores da revista ou o leitor dessa
resenha?
Nas fábulas de Sant'Anna, esse discurso viciado vicia e corrompe, transforma os seres humanos em seres quase humanos: gente sem substância.
Gente que não é gente, como o
personagem de "A Lei", que se
define como "primeira pessoa
pós-moderna", ou seja, uma figura do discurso. A crise de valores, aparentemente, já atingiu a literatura.
SEXO E AMIZADE
Autor: André Sant'Anna
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 41 (288 págs.)
Avaliação: ótimo
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