São Paulo, sábado, 09 de fevereiro de 2008

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Crítica/"Sexo e Amizade"

Sant'Anna leva crise de valores à literatura

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Lançada em 1999, a novela "Sexo", de André Sant'Anna, ajudou a consolidar a reputação do autor como um dos mais talentosos e originais de sua geração. O texto foi reeditado neste volume, ao lado de novas produções, o que nos ajuda a entender a trajetória particular do ficcionista.
"Sexo" arma-se por meio de frases diretas, sem rufos, e sentenças de tom e sintaxe monocórdios. Em vez de fazer uso de pronomes, por exemplo, o escritor repete o clichê com que identifica o personagem: "A enxaqueca da Gorda Com Cheiro de Perfume Avon só passava quando a Gorda Com Cheiro de Perfume Avon tomava Aspirina importada dos Estados Unidos".
A ação se reduz a banalidades do cotidiano, anunciadas de alguma forma pela música ordinária tocada no elevador onde se acham várias dessas figuras na cena de abertura. Mesmo os episódios e pensamentos sobre o sexo soam, nesse contexto, alienado, prosaicos, frios, destituídos de qualquer traço de humanidade.
O objetivo, sem dúvida, é satírico. A leitura torna-se difícil, não porque o texto seja complexo, mas porque sua simplicidade asfixiante e o emprego recorrente da repetição produzem no leitor o mesmo "tedium vitae" que anima (ou desanima?) os personagens.

Caracterização dos tipos
Muita coisa mudou nos procedimentos de Sant'Anna desde então, embora o cerne existencial, ou ausência dele, mantenha-se de lá para cá. Os estereótipos sociais, por exemplo. O clichê dos epítetos transfere-se agora para a caracterização dos tipos, facilmente identificáveis: o empresário do Audi vermelho, a mulher bonita, a produtora de TV.
Cada um deles, como que criado em estereotipia, reproduz um discurso igualmente estereotipado, em geral preconceituoso e de viés reacionário. Cada um elege um ou mais antagonistas, contra o qual vitupera: o povo, os comunistas, a mulher (que dirige), o maconheiro, o intelectual, o hippie etc.
Esses discursos se manifestam através do já consagrado método do fluxo de consciência. Esse monólogo interior a um tempo revela o personagem e estampa sua limitação. Como em "O Importado Vermelho de Noé", o extraordinário conto que inaugura o volume, a torrente de chavões também os afoga -até literalmente.
De onde vem essa linguagem vazia, essa opacidade, essa tipificação que André Sant'Anna representa e desmonta com idêntica virulência? Uma dica parece vir de "Sexo", quando o narrador explica que determinada revista se destina a "adolescentes do sexo feminino, das classes B e C+, virgens, que usam roupas de grife".
O perfil teria sido pelo departamento de mídia de uma agência de publicidade. Se nossa sociedade se reduz a estatísticas e perfis para uso de empresas de propaganda, que assim ajudam seus clientes a vender mais produtos, que dizer dos indivíduos, os (digamos) compradores da revista ou o leitor dessa resenha?
Nas fábulas de Sant'Anna, esse discurso viciado vicia e corrompe, transforma os seres humanos em seres quase humanos: gente sem substância. Gente que não é gente, como o personagem de "A Lei", que se define como "primeira pessoa pós-moderna", ou seja, uma figura do discurso. A crise de valores, aparentemente, já atingiu a literatura.


SEXO E AMIZADE
Autor:
André Sant'Anna
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 41 (288 págs.)
Avaliação: ótimo


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