São Paulo, sábado, 09 de fevereiro de 2008

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RODAPÉ LITERÁRIO

Desespero e melancolia

Biografia do compositor Álfred Shnittke revela tensão entre liberdade e rigor que atravessa a arte soviética

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

HÁ DEZ ANOS", surgiu na indústria fonográfica um selo intitulado "Musica Non Grata", sob o qual se reuniam compositores -como Edison Denisov e Galina Ustvolskaya- que tinham caído em desgraça na extinta União Soviética. Dentre eles, um nome que os críticos não hesitam em citar ao lado dos maiores do século 20: Álfred Shnittke (1934-1998).
Pouco conhecido mesmo entre o escasso público da música contemporânea, esse artífice do "poliestilismo" acaba de ganhar biografia escrita pelo pesquisador brasileiro (e médico) Marco Aurélio Scarpinella Bueno. "Shnittke: Música para Todos os Tempos" é um livro para todos e não exige conhecimentos musicológicos profundos. Exige, porém, um leitor atento à forma nada óbvia pela qual a invenção reverbera as harmonias e dissonâncias de seu tempo -fenômeno muito menos evidente na música do que nas linguagens da literatura ou das artes plásticas.
Nascido na cidade de Engels (região do Volga), Shnittke teve uma vida sem privações extremas ou sobressaltos. Foi persona non grata aos olhos dos burocratas do Partido Comunista, mas nem de longe passou pelo martírio dos artistas levados ao suicídio e aos "gulags" da era stalinista. Cresceu à sombra do "realismo socialista" de Jdánov, amadureceu artisticamente sob os períodos do "Degelo" de Kruschev e do recrudescimento de Brejnev -caracterizado menos pelo terror do que pelo torpor.
Nesse quadro, sua produção se coloca entre a tentativa de ultrapassar a escolástica do dodecafonismo (que Shnittke conheceu de perto numa curta estadia em Viena) sem renunciar à ousadia experimental ou ao "formalismo" (nomenclatura bolchevique correlata à "arte degenerada" do jargão nazista).
O pesquisador Scarpinella Bueno faz análises iluminadoras da "Sinfonia nº 1" (uma "anti-sinfonia") e da produção camerística de Shnittke, mostrando como sua mescla de atonalismo e tonalidade, além de resposta russa ao pós-modernismo (um ecletismo sombrio, nada eufórico), incorpora estruturalmente a tensão entre liberdade e rigor.
Esse livro, que coloca o compositor em diálogo com Mahler, Stravinski, Shostakóvitch e Luciano Berio -avessos a purismos e precursores do poliestilismo-, só se completa pela audição de uma música que, nas palavras do músico Arthur Nestrovski, "faz pensar na elaborada arte romanesca de autores como Thomas Bernhard e W.G. Sebald, para citar dois nomes de temperamento contrastante -um na fronteira do desespero, outro no limite da melancolia".
Por isso, uma observação: ao buscar referências a gravações em CD, deve-se usar a grafia Schnittke (com "sch"), mais freqüente do que a transliteração adotada por Scarpinella Bueno.


SHNITTKE: MÚSICA PARA TODOS OS TEMPOS
Autor:
Marco Aurélio Scarpinella Bueno
Editora: Algol
Quanto: R$ 57 (400 págs.)
Avaliação: bom


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