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RODAPÉ LITERÁRIO
Desespero e melancolia
Biografia do compositor Álfred Shnittke revela tensão entre liberdade e rigor que
atravessa a arte soviética
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
HÁ DEZ ANOS", surgiu na indústria fonográfica um selo
intitulado "Musica Non
Grata", sob o qual se reuniam compositores -como Edison Denisov e
Galina Ustvolskaya- que tinham
caído em desgraça na extinta União
Soviética. Dentre eles, um nome que
os críticos não hesitam em citar ao
lado dos maiores do século 20: Álfred Shnittke (1934-1998).
Pouco conhecido mesmo entre o
escasso público da música contemporânea, esse artífice do "poliestilismo" acaba de ganhar biografia escrita pelo pesquisador brasileiro (e médico) Marco Aurélio Scarpinella
Bueno. "Shnittke: Música para Todos os Tempos" é um livro para todos e não exige conhecimentos musicológicos profundos. Exige, porém, um leitor atento à forma nada
óbvia pela qual a invenção reverbera
as harmonias e dissonâncias de seu
tempo -fenômeno muito menos
evidente na música do que nas linguagens da literatura ou das artes
plásticas.
Nascido na cidade de Engels (região do Volga), Shnittke teve uma vida sem privações extremas ou sobressaltos. Foi persona non grata
aos olhos dos burocratas do Partido
Comunista, mas nem de longe passou pelo martírio dos artistas levados ao suicídio e aos "gulags" da era
stalinista. Cresceu à sombra do "realismo socialista" de Jdánov, amadureceu artisticamente sob os períodos do "Degelo" de Kruschev e do
recrudescimento de Brejnev -caracterizado menos pelo terror do
que pelo torpor.
Nesse quadro, sua produção se coloca entre a tentativa de ultrapassar
a escolástica do dodecafonismo (que
Shnittke conheceu de perto numa
curta estadia em Viena) sem renunciar à ousadia experimental ou ao
"formalismo" (nomenclatura bolchevique correlata à "arte degenerada" do jargão nazista).
O pesquisador Scarpinella Bueno
faz análises iluminadoras da "Sinfonia nº 1" (uma "anti-sinfonia") e da
produção camerística de Shnittke,
mostrando como sua mescla de atonalismo e tonalidade, além de resposta russa ao pós-modernismo
(um ecletismo sombrio, nada eufórico), incorpora estruturalmente a
tensão entre liberdade e rigor.
Esse livro, que coloca o compositor em diálogo com Mahler, Stravinski, Shostakóvitch e Luciano Berio -avessos a purismos e precursores do poliestilismo-, só se completa pela audição de uma música que,
nas palavras do músico Arthur Nestrovski, "faz pensar na elaborada arte romanesca de autores como Thomas Bernhard e W.G. Sebald, para
citar dois nomes de temperamento
contrastante -um na fronteira do
desespero, outro no limite da melancolia".
Por isso, uma observação: ao buscar referências a gravações em CD,
deve-se usar a grafia Schnittke (com
"sch"), mais freqüente do que a
transliteração adotada por Scarpinella Bueno.
SHNITTKE: MÚSICA PARA TODOS OS TEMPOS
Autor: Marco Aurélio Scarpinella Bueno
Editora: Algol
Quanto: R$ 57 (400 págs.)
Avaliação: bom
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