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TEATRO EM CARTAZ
"Apocalipse" dá novo sentido às palavras
ARTHUR NESTROVSKI
da Equipe de Articulistas
"As palavras vão perder o significado", anuncia o carteiro, de cima do telhado da casa de detenção. "Ganhar" talvez fosse mais
apropriado.
As palavras vão ganhar de novo
um sentido perdido, nas circunstâncias extraordinárias desse
"Apocalipse" brasileiro do escritor Fernando Bonassi e do diretor
Antônio Araújo.
O teatro de imagens e sensações, um teatro da presença, é
também o teatro do testemunho e
da reflexão e nos força a dar outro
sentido a palavras como "teatro",
"apocalipse" e "Brasil".
Escrito no exílio, na ilha grega
de Patmos, em fins do século 1º,
por um João que não era o mesmo São João do Evangelho, o
"Apocalipse" permanece um dos
livros mais influentes da nossa
cultura, que jamais cessa de reler e
reescrever a Bíblia.
A palavra "apocalipse", derivada do grego "apokalypsis", quer
dizer "revelação"; e essas visões
do fim dos tempos, sangrentas,
sem piedade, vêm sendo interpretadas variadamente como a verdade de cada tempo, ou a verdade
por vir.
Quanto mais se põe, mais se tira
de um texto tão rico de símbolos.
O que é literal e o que é figurado
nem sempre se pode distinguir,
nem o que é iminente (o "fim dos
tempos") e imanente ("Apocalipse agora").
Uma camada serve de contraponto para a outra, e os sentidos
se enriquecem pela sobreposição.
Pode soar improvável a reencarnação do poeta histérico de
Patmos no dramaturgo furioso
do Brás. Que a lista de recriadores
de João inclua Dante, Milton, Blake e Melville, ou um grande romancista atual como Thomas
Pynchon, dá a medida de audácia
de Fernando Bonassi.
Mas o ciclo alucinatório de perseguição-destruição-recompensa
ganha acentos locais com a naturalidade que se pode esperar de
um escritor de vocação tão brasileira.
O "pão da maldade" e o "vinho
da violência" são uma dieta cotidiana, traduzida aqui em imagens
fantasticamente próximas, fantasticamente distantes.
Sua linguagem suja é um idioma da pureza: a "pura buceta" de
Babilônia tem convicções e legitimidades que só um espectador
insensível poderia comparar à escatologia a não ser no sentido estrito da palavra, o estudo das coisas finais.
Autores como Bonassi têm impaciência com a literatura: se pudessem, diriam as coisas como
são. Isso não é possível; exceto,
nalguma medida, aqui no teatro,
onde os sentidos vivem a olhos
vistos.
A palavra "fogo" e o fogo incendeiam um ao outro. Toda a sofisticação da montagem deixa-se esconder, analogamente, na cuidadosa brutalidade do que se vê e se
vive dentro desse presídio abandonado.
Não se pode, mesmo, falar desse
texto sem repassar na memória as
imagens do espetáculo, um acervo que cada um vai levar na alma
até o fim dos tempos.
Os carnavais de Oswald de Andrade e os rituais de José Celso
Martinez Correa estão (mais ou
menos distantemente) por trás
(ou para trás) da trilogia bíblica
de Antônio Araújo.
Depois do "Paraíso Perdido" e
do "Livro de Jó", ela se completa
num espetáculo que afirma mais
um fim de certa idéia de teatro e o
advento de outro.
O que se vê e vive, a rigor, é o
que vê e vive o novo João, que
chega de mala rota e roupa puída
em busca da Nova Jerusalém.
Acossado, escuta as ordens do
Anjo Poderoso, de casaco de couro, botas pretas e gramática paulista: "Escreve o que você vê num
livro e envia-o às sete igrejas..."
("Apocalipse" 1, 11).
O que ele vê, de imediato, e nós
com ele, não é pouca coisa, na
boate New Jerusalém. Ali começa
a parada de aberrações e atrocidades, que "revelam", sem que se
possa desviar o olho, as normalidades e ferocidades de um país
inacreditável, igual ao nosso.
O sexo explícito, tão comentado, é o que menos impressiona,
entre tantas explicitações desconfortáveis.
Texto e montagem correm muitos riscos, e o resultado vence
quase todos com uma convicção
tamanha que o espetáculo, em si,
ergue-se como exemplo de resistência. Uma ou outra cena poderia ser menor? Talvez.
E há exageros de caracterização,
como a personagem Talidomida
do Brasil, que nem o virtuosismo
dos atores e do diretor pode salvar. O saldo negativo é pequeno,
comparado ao que há de original
e forte.
A descida do Juiz, dos céus obscuros para a corte no saguão das
celas. Sua autocondenação, ao
som do inesperado solo, sem nenhuma obviedade, da cuíca.
A ascensão da Noiva, em movimento contrário, escada acima,
soprada pelo vento das chamas.
Os delírios da Besta, drag queen e
mestre-de-cerimônias da boate; o
silêncio de seu duplo, Jesus.
A humilhação do negro e as dúbias glórias de seu antípoda, o
Pastor Alemão. A queda da Babilônia, tripudiada no chão imundo, em camisa-de-força.
Atores que passam o inimaginável são também grandes artistas do texto algo raro no teatro
brasileiro, onde uma praga divide
talentos do corpo e da palavra.
Atores atuam: a platéia vê: e um
certo casamento misterioso se
consagra, porque quem vive isso
junto só pode manter laços de respeito e afeto.
O tratamento da platéia, em especial, tem de ser pensado neste
contexto. Confrontados com o inferno, vivendo de perto o que não
concebem nem de longe, conduzidos pelas celas e corredores desse pesadelo, os espectadores não
são objeto, nunca, da violência.
Um limite estreito pelo menos
uma vez, na impressionante cena
do corredor polonês, um limite
mínimo jamais é transposto, e a
platéia aprende a confiar na discrição do diretor.
Em retrospecto, esse comportamento sugere uma lição oblíqua:
a relação entre o espetáculo e o espectador é precisamente um modelo do que não existe em tudo o
que se vê em cena.
"Testemunhai!", diz o Anjo Poderoso a João. E ele vai passar o
resto da peça em silêncio, de olhos
abertos, espantados, até o epílogo
de mínima esperança.
Mas se tudo o que vemos é o que
ele vê, isso "revela" outra sobreposição. Porque "teatro" significa
(aqui como nunca) exatamente
isso: "ver".
Reduzido ao máximo, esse apocalipse é o teatro -a visão- de
um homem que vê. O teatro de
um homem que vê o que não pode ser visto. O que não deveria
existir para ser visto. O que sem
ser visto não existe. O que não se
vê. O que agora se vê no homem
que viu para ser visto.
Nesse teatro, cada espectador se
vê, também, transformado na testemunha da testemunha -alguém que vê aquele que vê.
E é nesse momento, então, que
o próprio teatro chega a um apocalipse: cada um que saia, depois,
carregando as revelações por dentro, para ver, como puder, o apocalipse de fora.
Avaliação:
Espetáculo: Apocalipse 1, 11
Realização: Teatro da Vertigem
Texto: Fernando Bonassi
Direção: Antônio Araújo
Onde: Presídio do Hipódromo (rua do
Hipódromo, 600, tel. 9354-7321)
Quando: qui. a sáb., 21 h; dom., 20h.
Quanto: R$ 20 (qui.), R$ 25 (sex. e dom.),
R$ 30 (sáb.).
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