São Paulo, quinta-feira, 09 de março de 2000


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TEATRO EM CARTAZ
"Apocalipse" dá novo sentido às palavras

ARTHUR NESTROVSKI
da Equipe de Articulistas

"As palavras vão perder o significado", anuncia o carteiro, de cima do telhado da casa de detenção. "Ganhar" talvez fosse mais apropriado.
As palavras vão ganhar de novo um sentido perdido, nas circunstâncias extraordinárias desse "Apocalipse" brasileiro do escritor Fernando Bonassi e do diretor Antônio Araújo.
O teatro de imagens e sensações, um teatro da presença, é também o teatro do testemunho e da reflexão e nos força a dar outro sentido a palavras como "teatro", "apocalipse" e "Brasil".
Escrito no exílio, na ilha grega de Patmos, em fins do século 1º, por um João que não era o mesmo São João do Evangelho, o "Apocalipse" permanece um dos livros mais influentes da nossa cultura, que jamais cessa de reler e reescrever a Bíblia.
A palavra "apocalipse", derivada do grego "apokalypsis", quer dizer "revelação"; e essas visões do fim dos tempos, sangrentas, sem piedade, vêm sendo interpretadas variadamente como a verdade de cada tempo, ou a verdade por vir.
Quanto mais se põe, mais se tira de um texto tão rico de símbolos. O que é literal e o que é figurado nem sempre se pode distinguir, nem o que é iminente (o "fim dos tempos") e imanente ("Apocalipse agora").
Uma camada serve de contraponto para a outra, e os sentidos se enriquecem pela sobreposição.
Pode soar improvável a reencarnação do poeta histérico de Patmos no dramaturgo furioso do Brás. Que a lista de recriadores de João inclua Dante, Milton, Blake e Melville, ou um grande romancista atual como Thomas Pynchon, dá a medida de audácia de Fernando Bonassi.
Mas o ciclo alucinatório de perseguição-destruição-recompensa ganha acentos locais com a naturalidade que se pode esperar de um escritor de vocação tão brasileira.
O "pão da maldade" e o "vinho da violência" são uma dieta cotidiana, traduzida aqui em imagens fantasticamente próximas, fantasticamente distantes.
Sua linguagem suja é um idioma da pureza: a "pura buceta" de Babilônia tem convicções e legitimidades que só um espectador insensível poderia comparar à escatologia a não ser no sentido estrito da palavra, o estudo das coisas finais.
Autores como Bonassi têm impaciência com a literatura: se pudessem, diriam as coisas como são. Isso não é possível; exceto, nalguma medida, aqui no teatro, onde os sentidos vivem a olhos vistos.
A palavra "fogo" e o fogo incendeiam um ao outro. Toda a sofisticação da montagem deixa-se esconder, analogamente, na cuidadosa brutalidade do que se vê e se vive dentro desse presídio abandonado.
Não se pode, mesmo, falar desse texto sem repassar na memória as imagens do espetáculo, um acervo que cada um vai levar na alma até o fim dos tempos.
Os carnavais de Oswald de Andrade e os rituais de José Celso Martinez Correa estão (mais ou menos distantemente) por trás (ou para trás) da trilogia bíblica de Antônio Araújo.
Depois do "Paraíso Perdido" e do "Livro de Jó", ela se completa num espetáculo que afirma mais um fim de certa idéia de teatro e o advento de outro.
O que se vê e vive, a rigor, é o que vê e vive o novo João, que chega de mala rota e roupa puída em busca da Nova Jerusalém.
Acossado, escuta as ordens do Anjo Poderoso, de casaco de couro, botas pretas e gramática paulista: "Escreve o que você vê num livro e envia-o às sete igrejas..." ("Apocalipse" 1, 11).
O que ele vê, de imediato, e nós com ele, não é pouca coisa, na boate New Jerusalém. Ali começa a parada de aberrações e atrocidades, que "revelam", sem que se possa desviar o olho, as normalidades e ferocidades de um país inacreditável, igual ao nosso.
O sexo explícito, tão comentado, é o que menos impressiona, entre tantas explicitações desconfortáveis.
Texto e montagem correm muitos riscos, e o resultado vence quase todos com uma convicção tamanha que o espetáculo, em si, ergue-se como exemplo de resistência. Uma ou outra cena poderia ser menor? Talvez.
E há exageros de caracterização, como a personagem Talidomida do Brasil, que nem o virtuosismo dos atores e do diretor pode salvar. O saldo negativo é pequeno, comparado ao que há de original e forte.
A descida do Juiz, dos céus obscuros para a corte no saguão das celas. Sua autocondenação, ao som do inesperado solo, sem nenhuma obviedade, da cuíca.
A ascensão da Noiva, em movimento contrário, escada acima, soprada pelo vento das chamas. Os delírios da Besta, drag queen e mestre-de-cerimônias da boate; o silêncio de seu duplo, Jesus.
A humilhação do negro e as dúbias glórias de seu antípoda, o Pastor Alemão. A queda da Babilônia, tripudiada no chão imundo, em camisa-de-força.
Atores que passam o inimaginável são também grandes artistas do texto algo raro no teatro brasileiro, onde uma praga divide talentos do corpo e da palavra.
Atores atuam: a platéia vê: e um certo casamento misterioso se consagra, porque quem vive isso junto só pode manter laços de respeito e afeto.
O tratamento da platéia, em especial, tem de ser pensado neste contexto. Confrontados com o inferno, vivendo de perto o que não concebem nem de longe, conduzidos pelas celas e corredores desse pesadelo, os espectadores não são objeto, nunca, da violência.
Um limite estreito pelo menos uma vez, na impressionante cena do corredor polonês, um limite mínimo jamais é transposto, e a platéia aprende a confiar na discrição do diretor.
Em retrospecto, esse comportamento sugere uma lição oblíqua: a relação entre o espetáculo e o espectador é precisamente um modelo do que não existe em tudo o que se vê em cena.
"Testemunhai!", diz o Anjo Poderoso a João. E ele vai passar o resto da peça em silêncio, de olhos abertos, espantados, até o epílogo de mínima esperança.
Mas se tudo o que vemos é o que ele vê, isso "revela" outra sobreposição. Porque "teatro" significa (aqui como nunca) exatamente isso: "ver".
Reduzido ao máximo, esse apocalipse é o teatro -a visão- de um homem que vê. O teatro de um homem que vê o que não pode ser visto. O que não deveria existir para ser visto. O que sem ser visto não existe. O que não se vê. O que agora se vê no homem que viu para ser visto.
Nesse teatro, cada espectador se vê, também, transformado na testemunha da testemunha -alguém que vê aquele que vê.
E é nesse momento, então, que o próprio teatro chega a um apocalipse: cada um que saia, depois, carregando as revelações por dentro, para ver, como puder, o apocalipse de fora.


Avaliação:     


Espetáculo: Apocalipse 1, 11
Realização: Teatro da Vertigem
Texto: Fernando Bonassi
Direção: Antônio Araújo
Onde: Presídio do Hipódromo (rua do Hipódromo, 600, tel. 9354-7321)
Quando: qui. a sáb., 21 h; dom., 20h.
Quanto: R$ 20 (qui.), R$ 25 (sex. e dom.), R$ 30 (sáb.).


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