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CONTARDO CALLIGARIS
Viva o Carnaval na Sapucaí
A Sapucaí tem um lado cruel.
Na avenida não há ninguém para
editar piedosamente as imagens.
Impossível não ver o apoio de
destaque e harmonia ou os empurradores atrás dos carros alegóricos. Os diretores de ala puxam,
empurram, mandam parar ou
correr. Há fantasias que se desfazem antes da hora. Aquele lá perdeu um sapato. Outro foi para a
avenida com um tênis preto que
destoa e brilha no meio das sandálias douradas. Aí há dois que,
em vez de sambar, não param de
conversar.
As mulheres e os homens mais
bonitos, nus, ou quase, no destaque, enchem a tela da televisão. O
telespectador pode imaginar que
os corpos de todos sejam formosos
e apetecíveis. Mas na Sapucaí, de
perto, entre as lantejoulas, aparecem muitas carnes brancas e trêmulas, um pouco enjoativas.
Em suma, pode surgir uma dúvida: não era melhor na TV, tudo
bonito, tudo aparentemente espontâneo, um milagre de alegria,
sem falhas e sem erros?
Há quem ache isso mesmo. Tarde na noite de domingo, num camarote, há três homens (turistas)
e três meninas. Enquanto as meninas sambam, um dos homens,
bêbado, deitado no chão, contempla na TV a versão Globo do desfile que está passando logo atrás dele. Os dois restantes preferem fazer sua própria edição. Um olha
para a avenida pela telinha de
sua videocâmara. Ele prepara a
versão uso família: nudez permitida, mas sem provocações. O outro prepara a versão dura: só fotografa as mulheres que respondem
obscenamente às suas tentativas
(eficazes, aliás) de chamar a atenção.
Afinal, eles estão vivendo um
bom momento, quem sabe um sonho. Por que não editá-lo na hora? Na mesma linha, não me estranharia que, um dia destes, um
prefeito do Rio colocasse telões gigantes no sambódromo para que
possamos, estando na Sapucaí,
ver nossa alegria já editada e, portanto (dirão), mais perfeita.
Na fila para comprar os ingressos para o baile do Scala, um jovem quer o baile de sábado, que é
o bom. Cinquenta reais é muito,
ele diz, mas desta vez ele vai, seja
qual for o preço. Confessa: "Não
aguento mais ver isto só na televisão".
Ele não vai se decepcionar. Afinal, está já com a experiência editada por anos de Scala na TV. Sua
lembrança será igual a seu sonho
televisual acumulado, mais a certeza de que ele esteve lá de verdade.
Mas voltemos à Sapucaí. O milagre é que a avenida ganha da
TV. Gosto das imperfeições, dos
ventres moles, dos sambas de pato
bêbado e das fantasias quebradas.
É isso que me comove. Reconheço-me no esforço de todos justamente
porque é um esforço heróico, obstinado e fracassado.
Mas de qual esforço estou falando?
Sábado à noite, desfilando na
avenida, às vezes a harmonia enfraquece, a mágica parece estar
prestes a se desfazer. Aprendo logo
que o remédio é levantar os braços e os olhos para a arquibancada ou os camarotes, pedindo um
retorno: dancem, se mexam, se
empolguem conosco.
Nas noites seguintes, como espectador, verifico que é difícil recusar este apelo. Uma vez encontrado um olhar lá embaixo, fica
impossível não sacudir e acompanhar. O samba é de todos, porque
é de todos o esforço de se ver felizes. É para isso que serve o desfile:
a arquibancada se vê na escola e a
escola se vê na arquibancada.
Juntas se confirmam na vontade
de alegria.
Afinal, todos precisamos nos ver
de alguma forma. Isso pede invenção e manutenção. O Carnaval é
como a malhação anual coletiva
necessária para manter a imagem, o "look" que a gente quer. E
a imagem aqui na Sapucaí é honesta: não é alegria televisiva ou
babaca. Ao contrário, é a própria
imagem do esforço que custa passar pela vida mantendo o sorriso e
o samba no pé.
Ninguém aqui confunde a fantasia com a roupa de cada dia e
todos sabem que a fantasia é imperfeita e embaraçosa.
Há outras maneiras de ver, certamente. As mais patéticas são as
que tentam passar por outra coisa
que não fantasias.
Por exemplo, alguns anos atrás,
um psicanalista francês passou o
Carnaval no Rio. De volta à França, declarou a uma assembléia
admirativa que o Carnaval carioca era, como ele se expressou,
"uma experiência de gozo especular". Até aí tudo bem.
Mas era óbvio, na fala, um desprezo para os índios que gostam
de ser alegres e de se olhar nesta
alegria. Na verdade o desprezo
era pelo simples fato de os índios
gostarem de se olhar - ponto. Subentendido: "A gente aqui em Paris não brinca com espelhinhos; a
gente nem precisa se ver; a gente,
aliás, prefere ser do que se ver". O
engraçado é que ele falava numa
situação absolutamente parecida
com a Sapucaí: ele falava e sua arquibancada só queria se espelhar
nele. A única diferença é que, naquele caso, todos queriam se ver
não alegres e felizes, mas metidos
a besta. Conseguiam muito bem.
Breves:
Por que a bandeira estampada
em camiseta ou sutiã pode, mas
desenhada no corpo não pode?
Adorei Roberta Close como símbolo da liberdade de escolha. São
as verdadeiras "Diretas Já".
As impressões de Carnaval são
como um bloco que deveria se
chamar A Cada Ano Sai Diferente.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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