São Paulo, quinta-feira, 09 de março de 2006

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COMIDA

Em livro lançado na Bienal, autor palestino radicado na Espanha resgata as receitas e os segredos da gastronomia do Oriente Médio

Sabor das arábias

JANAINA FIDALGO
DA REPORTAGEM LOCAL

A primeira incursão do palestino Salah Jamal à cozinha, território reservado exclusivamente às mulheres no mundo árabe, não ocorreu por iniciativa dele: foi encomendada pela mãe, interessada em investigar por que os quibes da cunhada síria eram muito melhores que os dela.
Todos os passos da tia foram anotados pelo menino. Em vão. Mesmo seguindo o relatório do garoto "ao pé da letra", os bolinhos da mãe de Jamal continuaram aquém dos da tia dele.
Anos mais tarde, e já fora de sua cidade natal, Nablus -ele está radicado há 32 anos em Barcelona, onde é professor de diversidade cultural na Universidade de Vic-, Jamal, 54, visitou cozinhas de libanesas, egípcias, marroquinas e palestinas com um novo propósito: resgatar as receitas e os segredos da gastronomia árabe.
Desta vez, a missão de Jamal foi bem-sucedida e beneficia qualquer um que queira se aventurar no universo das fragrâncias e sabores da região. As receitas relatadas oralmente por cada uma das mulheres entrevistadas pelo palestino, que as considera "arquivos da cultura culinária", deram origem a um livro lançado no Brasil pela Senac, "Aroma Árabe" (206 págs.; R$ 40), que é um dos destaques do segmento na 19ª Bienal do Livro de São Paulo.
Publicado originalmente em espanhol, já foi traduzido para seis línguas e ganhou, em 2000, o prêmio de melhor livro de cozinha estrangeira no Salon Livre Gourmand em Périgueux, na França.
Tamanho sucesso deve-se principalmente à maneira simplificada e bem-humorada encontrada pelo autor para transmitir -mais que receitas- um pouco da história e das tradições dos povos árabes. "A gastronomia é como a música, são signos identitários que atravessam fronteiras sem vistos nem documentos. Se forem bons, serão aceitos em toda parte, sem preconceito. Quanto aos gostos, não há nada determinado. Os hambúrgueres do McDonald's são horríveis, são a antítese da gastronomia e do prazer e, no entanto, nos Estados Unidos e em outros lugares, são aceitos", diz Salah Jamal em entrevista à Folha.

Do homus ao cordeiro
Com receitas, as origens de cada prato e os relatos do autor, cada capítulo do livro é dedicado a uma iguaria -dos populares e de fácil preparo (quibe, homus e falafel) aos mais elaborados, como o "al uzi", o apetitoso (e supertrabalhoso) cordeiro recheado com amêndoa, pistache e pinole.
No trecho dedicado à cremosa pasta de berinjela árabe, descobre-se que, na Síria e nos territórios palestinos, babaganuche é o apelido de um prato chamado "mutabal batinjen". Babaganuche, conta Jamal, quer dizer "irresistível e manhoso". Não por acaso, é servido pelas mães às filhas solteiras, pois, diz a lenda, as que o comem ficam "irresistíveis e manhosas" -qualidades que "valorizam a mulher árabe em idade de casar".
Descrita como "o prato da nostalgia" e "dos pobres por excelência", a mijadra foi difundida nos anos 40 e 50 no mundo árabe em razão das guerras e migrações. No Egito é chamada de kushari, e na Síria, de mudardara. "A facilidade de conservação e do transporte de suas matérias-primas [arroz e lentilha] ajudou a difundi-lo, sobretudo em períodos de conflitos sociais e guerras", relata Jamal.

A vida fora de Nablus
Qual força maior, a não ser a saudade do cheiro da fritura do falafel, o bolinho de fava e grão-de-bico, entre tantos outros, levaria um dermatologista, graduado em história e geografia, a investigar a gastronomia árabe?
"Eu sai de Nablus e fui para Barcelona. Em poucas semanas senti saudade dos aromas palestinos: as comidas, as azeitonas, os azeites, o ar puro. Com a intenção de recuperar um pouco desses aromas, comecei pela comida. Não tinha a menor idéia do que era cozinhar, mas a necessidade é a mãe das invenções", conta.
Recepcionado no porto da cidade de Gaudí por compatriotas, Jamal ficou surpreso: em vez de ouvir perguntas sobre a guerra civil entre palestinos e jordanianos, se viu diante de uma discussão nostalgica (e insólita) sobre falafel e homus. "Parece mentira, não? Mas é assim. As notícias são ouvidas e lidas em todos os lugares, a toda hora, e não ocorre o mesmo com a saudade dos aromas. Quando você passa um tempo sem senti-los e, de repente, topa com eles, se emociona", explica.
Nos anos 70, para aplacar a nostalgia, Jamal e outros estudantes árabes tentaram inúmeras vezes fazer autênticos menus da região. Por falta de noção culinária e ausência de matérias-primas essenciais no solo europeu, tudo o que conseguiam eram "semicomidas" árabes. Sem saber nem mesmo como responder às solicitações dos espanhóis, interessados no preparo de pratos típicos de sua terra, a cada visita que fazia aos países árabes Jamal tratava de se abastecer de receitas tradicionais.
Um homem árabe querendo aprender a cozinhar? Não bastasse o olhar e as reações de desconfiança ao interesse de Jamal pela gastronomia, os relatos das mulheres cozinheiras eram, ao menos no início, acompanhados pelos maridos ou irmãos destas.
"Quando os homens descobriam que o que me interessava era a cozinha, ficavam tranqüilos e me deixavam sozinho com elas, acreditando que eu era gay -porque cozinha [nos países árabes] é coisa de mulheres, não de homens", diverte-se.


As fotos desta reportagem foram feitas no restaurante Arabia (r. Haddock Lobo, 1.397, tel. 0/xx/11/3061-2203)


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