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comentário
Sem referência, crítico descreve vivência pessoal
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Poderia ser, quem
sabe, uma verdadeira "comédia dos
erros": o crítico de gastronomia falando de dança, o
crítico de cinema metido
numa exposição de arte, o
de artes plásticas às voltas
com a culinária chinesa.
Mas o resultado dessa
experiência foi menos bizarro do que se poderia
pensar. E isso por vários
motivos, que revelam tanto as qualidades como os
defeitos do jornalismo
praticado na Ilustrada.
Qualidades: escrevendo
sobre sua área, ou fora dela, os críticos do jornal
procuram uma linguagem
acessível, muito próxima à
da experiência cotidiana
do leitor. Desenvolveram
muita habilidade no texto
leve e objetivo, que diga
sem muita enrolação o
que há para ser visto, ouvido ou "degustado".
Desse modo, desaparece
o contraste entre a escrita
especializada e o texto de
alguém sem grande conhecimento técnico.
E, como nenhum jornalista gosta de fazer papel
de bobo, há sempre soluções quando se trata de escrever sobre um assunto
pouco familiar. Pode-se,
por exemplo, deslocar o
foco das atenções: em vez
de falar sobre determinado show, concerto etc., falar sobre a própria vivência pessoal, destacando a
estranheza ou o fascínio
de presenciar algum espetáculo que não faz parte
do repertório habitual.
Claro que existem áreas
e áreas. Avaliar um concerto de música clássica
exige um conhecimento
técnico que a crítica de um
filme, pelo menos em jornal, dispensa. Pois a linguagem do cinema hollywoodiano, embora possa
ser analisada em profundidade, dirige-se a um público amplo, aspirando a
uma comunicação imediata; nem sempre se pode dizer o mesmo de uma instalação de vanguarda ou
de alguma sutileza de um
maestro, em que referências e comparações com o
que já foi feito fazem parte
essencial da mensagem
que se quer transmitir.
Espaço
Aí entramos no capítulo
dos defeitos. O problema é
que as críticas do jornal,
mesmo quando feitas por
pessoas especializadas,
tendem a ser curtas demais. Aproximam-se muitas vezes do gênero da reportagem. Nem sempre há
espaço para fazer três coisas básicas: dizer do que se
trata, falar dos prós e falar
dos contras. Que dizer, então, de uma análise mais
"especializada"...
É como se, na busca do
leitor comum, estivéssemos diante de um problema insolúvel. Para "trocar
em miúdos" uma análise
mais técnica, é preciso
muito espaço. Uma palavra do jargão especializado só pode ser traduzida
por muitas palavras da linguagem comum. Temos,
entretanto, de usar a linguagem comum, em pouco espaço. E o leitor tem
menos tempo.
Acaba-se fazendo uma
ginástica para que o acessível não se torne trivial, e
para que o julgamento crítico não se resuma a uma
pontuação mínima de
qualidades e defeitos, sobre a qual pesa a suspeita
do arbítrio ou da arrogância. Sem dúvida, já houve
mais arrogância e mais arbítrio na Ilustrada. Já
houve mais espaço para a
crítica, também.
MARCELO COELHO é articulista da Folha e autor do livro "Crítica Cultural: Teoria e Prática" (Publifolha).
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