São Paulo, domingo, 09 de março de 2008

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comentário

Sem referência, crítico descreve vivência pessoal

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Poderia ser, quem sabe, uma verdadeira "comédia dos erros": o crítico de gastronomia falando de dança, o crítico de cinema metido numa exposição de arte, o de artes plásticas às voltas com a culinária chinesa.
Mas o resultado dessa experiência foi menos bizarro do que se poderia pensar. E isso por vários motivos, que revelam tanto as qualidades como os defeitos do jornalismo praticado na Ilustrada.
Qualidades: escrevendo sobre sua área, ou fora dela, os críticos do jornal procuram uma linguagem acessível, muito próxima à da experiência cotidiana do leitor. Desenvolveram muita habilidade no texto leve e objetivo, que diga sem muita enrolação o que há para ser visto, ouvido ou "degustado".
Desse modo, desaparece o contraste entre a escrita especializada e o texto de alguém sem grande conhecimento técnico.
E, como nenhum jornalista gosta de fazer papel de bobo, há sempre soluções quando se trata de escrever sobre um assunto pouco familiar. Pode-se, por exemplo, deslocar o foco das atenções: em vez de falar sobre determinado show, concerto etc., falar sobre a própria vivência pessoal, destacando a estranheza ou o fascínio de presenciar algum espetáculo que não faz parte do repertório habitual.
Claro que existem áreas e áreas. Avaliar um concerto de música clássica exige um conhecimento técnico que a crítica de um filme, pelo menos em jornal, dispensa. Pois a linguagem do cinema hollywoodiano, embora possa ser analisada em profundidade, dirige-se a um público amplo, aspirando a uma comunicação imediata; nem sempre se pode dizer o mesmo de uma instalação de vanguarda ou de alguma sutileza de um maestro, em que referências e comparações com o que já foi feito fazem parte essencial da mensagem que se quer transmitir.

Espaço
Aí entramos no capítulo dos defeitos. O problema é que as críticas do jornal, mesmo quando feitas por pessoas especializadas, tendem a ser curtas demais. Aproximam-se muitas vezes do gênero da reportagem. Nem sempre há espaço para fazer três coisas básicas: dizer do que se trata, falar dos prós e falar dos contras. Que dizer, então, de uma análise mais "especializada"...
É como se, na busca do leitor comum, estivéssemos diante de um problema insolúvel. Para "trocar em miúdos" uma análise mais técnica, é preciso muito espaço. Uma palavra do jargão especializado só pode ser traduzida por muitas palavras da linguagem comum. Temos, entretanto, de usar a linguagem comum, em pouco espaço. E o leitor tem menos tempo.
Acaba-se fazendo uma ginástica para que o acessível não se torne trivial, e para que o julgamento crítico não se resuma a uma pontuação mínima de qualidades e defeitos, sobre a qual pesa a suspeita do arbítrio ou da arrogância. Sem dúvida, já houve mais arrogância e mais arbítrio na Ilustrada. Já houve mais espaço para a crítica, também.


MARCELO COELHO é articulista da Folha e autor do livro "Crítica Cultural: Teoria e Prática" (Publifolha).

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