São Paulo, quinta, 9 de abril de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O vexame amazônico e a profecia do Patriarca

EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha

Nunca é fácil demarcar a fronteira entre o que poderia e o que não poderia ser diferente do que é. A oração dos alcoólatras anônimos coloca bem a questão: "Deus nos dê serenidade para aceitar o que não podemos mudar, coragem para mudar o que podemos e sabedoria para fazer a distinção". A incapacidade de discernir entre o que podemos e não podemos mudar conduz a duas patologias simétricas no processo decisório -o fatalismo e o voluntarismo.
Para o fatalista, não há o que fazer. O futuro é tão fechado à escolha humana quanto o passado. Nada poderia ter sido diferente do que foi e apenas o que de fato acontece é possível. Sob a ótica do fatalismo, como para o presidente Sarney ao final de seu mandato, só existem duas classes de problemas no mundo: os insolúveis e os que se resolvem por si mesmos. Na fórmula clássica do estóico Cleantes: "Se eu não quiser seguir pelo caminho fatal, tendo me tornado um mau homem, eu terei de seguir por ele de qualquer maneira".
Para o voluntarista, no pólo oposto, tudo é questão de vontade. O homem é senhor de si e sócio majoritário do devir. Ao contrário do passado, o futuro é aberto e dócil à escolha humana. O que seremos um dia refletirá o que fizermos a partir de agora. Onde há vontade e entusiasmo, como pregava o idealizador de Brasília, sempre há saída. Se faltam recursos, dá-se um jeito; as contas e rombos ficam para depois. Como sonhava o jovem Marx: "A humanidade só se coloca os problemas que ela é capaz de resolver". Querer é poder.
O fatalismo e o voluntarismo são pulsões da alma humana. Quem se examina de perto saberá auscultá-las em si. Os adeptos de suas formas puras, é verdade, são aves raras, espécies exóticas que povoam o ar rarefeito das cordilheiras filosóficas. Mas o risco de pender em demasia para um desses extremos é real. O desafio de encontrar o ponto certo entre a Cila da resignação fatalista e a Caríbdis da temeridade voluntarista permeia as mais diversas esferas de atuação na vida prática.
Uma das áreas em que a dificuldade de se demarcar a fronteira entre o inevitável e o passível de mudança aparece de forma mais aguda e inquietante é a discussão de problemas ecológicos. Considere, por exemplo, a questão do diagnóstico das causas do gigantesco incêndio que, até ser debelado pelas chuvas providenciais do início do mês, consumiu milhares de quilômetros quadrados de vegetação em Roraima. Até que ponto a catástrofe teria sido evitável? Que lições se podem tirar do episódio?
A visão fatalista da tragédia atribui a causa do megaincêndio a fatores climáticos associados ao El Niño. O desastre em Roraima teria sido análogo ao que vem devastando outras regiões do planeta e não poderia ter sido evitado. Como afirmou o ministro das Relações Exteriores, Luiz Felipe Lampreia, eximindo o governo e a sociedade brasileiros de qualquer responsabilidade pela catástrofe: "O que aconteceu foi um desastre natural e não um problema de gerenciamento ecológico". Era o que tinha de ser.
Que o El Niño tenha tido sua cota de participação na tragédia, tornando passível de incêndio uma floresta que muitos imaginavam úmida demais para queimar, seria difícil negar. Supõe-se, inclusive, que a presença de carvão vegetal nos solos de cerrado onde começou o incêndio seja evidência de que a região já foi submetida ao fogo em outras ocasiões nos últimos milênios e que isso esteja levando a uma lenta e gradual invasão do cerrado sobre a floresta. Lenha na fogueira dos que preferem acreditar no caráter puramente natural do desastre.
Tudo isso é plausível, ainda que limitado como hipótese explicativa. É difícil crer que o incêndio teria se espalhado e tido a gravidade que teve não fosse a prática disseminada das queimadas e o desmatamento cego e selvagem que vem assolando a região. A imprensa relatou casos pontuais de queimadas que fugiram do controle, destruindo casas e matas adjacentes, assim como o de outras, iniciadas durante o desastre, em plena área de risco.
Quem quer que viaje com um mínimo de regularidade pelo interior do Brasil não pode deixar de constatar como as queimadas da estação seca e as enxurradas da chuvosa estão provocando enormes e crescentes danos ao nosso meio ambiente. O aeroporto de Cuiabá, por exemplo, tem permanecido fechado boa parte do ano devido à fumaça que encobre a região. O fogo e a erosão são forças conjugadas que se reforçam mutuamente e que estão assumindo um poder destruidor alarmante.
Mas o que foi realmente estarrecedor no episódio do megaincêndio não foi o fatalismo cínico do diagnóstico, mas a catatonia inexplicável da reação. "Não podemos deixar que esse desastre", declarou ao mundo o ministro Lampreia, "se transforme numa confissão de que não sabemos tomar conta da Amazônia". Por incrível que pareça, foi subitamente Lula quem se deu ares de neoliberal: "Em tempos de modernidade, o nacionalismo de FHC é tacanho".
Para não incorrer na suposta humilhação de aceitar ajuda internacional, o governo ignorou os repetidos alertas da ONU e mergulhou no vexame amazônico de sua grotesca imprevidência. Temos às maiores florestas tropicais do mundo, temos um problema crônico de queimadas, mas nenhum avião, equipamento ou pessoal treinado para apagar incêndios. Ao El Niño natural juntou-se o El Niño da inépcia e obscurantismo estatal-militar.
O fato é que a postura letárgica do governo FHC diante do desastre exalou um inconfundível cheiro de "sarneyzação". O problema era insolúvel antes ("culpa do El Niño") e somente se poderia resolver por si mesmo depois ("só a chuva resolve"). Como resumiu o deputado Sarney Filho: "Acho que o pessoal de Roraima poderia votar no Menem, que foi o primeiro a dar ajuda".
A tragédia de Roraima é parte de um todo. O voluntarismo delirante da nova Lei de Crimes Ambientais é apenas o reverso desse mesmo quadro. Não me considero fatalista, mas ao ler a profecia feita por José Bonifácio, o Patriarca da Independência, em 1822, temo que o nosso futuro já esteja escrito:
"A natureza fez tudo a nosso favor, nós porém pouco ou nada temos feito a favor da natureza. Nossas terras estão ermas e as poucas que temos roteado são mal cultivadas; nossas preciosas matas vão desaparecendo, vítimas do fogo e do machado destruidor, da ignorância e do egoísmo; nossos montes e encostas vão se escalvando diariamente e com o andar do tempo faltarão as chuvas fecundantes, que favoreçam a vegetação e alimentem nossas fontes e rios, sem o que o nosso belo Brasil em menos de dois séculos ficará reduzido aos páramos e desertos áridos da Líbia. Virá então esse dia (dia terrível e fatal), em que a ultrajada natureza se ache vingada de tantos erros e crimes cometidos."



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.