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O vexame amazônico e a profecia do Patriarca
EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha
Nunca é fácil demarcar a
fronteira entre o que poderia e
o que não poderia ser diferente
do que é. A oração dos alcoólatras anônimos coloca bem a
questão: "Deus nos dê serenidade para aceitar o que não
podemos mudar, coragem para
mudar o que podemos e sabedoria para fazer a distinção".
A incapacidade de discernir
entre o que podemos e não podemos mudar conduz a duas
patologias simétricas no processo decisório -o fatalismo e
o voluntarismo.
Para o fatalista, não há o que
fazer. O futuro é tão fechado à
escolha humana quanto o passado. Nada poderia ter sido diferente do que foi e apenas o
que de fato acontece é possível.
Sob a ótica do fatalismo, como
para o presidente Sarney ao final de seu mandato, só existem
duas classes de problemas no
mundo: os insolúveis e os que
se resolvem por si mesmos. Na
fórmula clássica do estóico
Cleantes: "Se eu não quiser seguir pelo caminho fatal, tendo
me tornado um mau homem,
eu terei de seguir por ele de
qualquer maneira".
Para o voluntarista, no pólo
oposto, tudo é questão de vontade. O homem é senhor de si e
sócio majoritário do devir. Ao
contrário do passado, o futuro
é aberto e dócil à escolha humana. O que seremos um dia
refletirá o que fizermos a partir de agora. Onde há vontade
e entusiasmo, como pregava o
idealizador de Brasília, sempre
há saída. Se faltam recursos,
dá-se um jeito; as contas e
rombos ficam para depois. Como sonhava o jovem Marx: "A
humanidade só se coloca os
problemas que ela é capaz de
resolver". Querer é poder.
O fatalismo e o voluntarismo
são pulsões da alma humana.
Quem se examina de perto saberá auscultá-las em si. Os
adeptos de suas formas puras,
é verdade, são aves raras, espécies exóticas que povoam o ar
rarefeito das cordilheiras filosóficas. Mas o risco de pender
em demasia para um desses
extremos é real. O desafio de
encontrar o ponto certo entre a
Cila da resignação fatalista e a
Caríbdis da temeridade voluntarista permeia as mais diversas esferas de atuação na vida
prática.
Uma das áreas em que a dificuldade de se demarcar a fronteira entre o inevitável e o passível de mudança aparece de
forma mais aguda e inquietante é a discussão de problemas
ecológicos. Considere, por
exemplo, a questão do diagnóstico das causas do gigantesco incêndio que, até ser debelado pelas chuvas providenciais
do início do mês, consumiu
milhares de quilômetros quadrados de vegetação em Roraima. Até que ponto a catástrofe
teria sido evitável? Que lições
se podem tirar do episódio?
A visão fatalista da tragédia
atribui a causa do megaincêndio a fatores climáticos associados ao El Niño. O desastre
em Roraima teria sido análogo
ao que vem devastando outras
regiões do planeta e não poderia ter sido evitado. Como afirmou o ministro das Relações
Exteriores, Luiz Felipe Lampreia, eximindo o governo e a
sociedade brasileiros de qualquer responsabilidade pela catástrofe: "O que aconteceu foi
um desastre natural e não um
problema de gerenciamento
ecológico". Era o que tinha de
ser.
Que o El Niño tenha tido sua
cota de participação na tragédia, tornando passível de incêndio uma floresta que muitos imaginavam úmida demais
para queimar, seria difícil negar. Supõe-se, inclusive, que a
presença de carvão vegetal nos
solos de cerrado onde começou
o incêndio seja evidência de
que a região já foi submetida
ao fogo em outras ocasiões nos
últimos milênios e que isso esteja levando a uma lenta e gradual invasão do cerrado sobre
a floresta. Lenha na fogueira
dos que preferem acreditar no
caráter puramente natural do
desastre.
Tudo isso é plausível, ainda
que limitado como hipótese
explicativa. É difícil crer que o
incêndio teria se espalhado e
tido a gravidade que teve não
fosse a prática disseminada
das queimadas e o desmatamento cego e selvagem que
vem assolando a região. A imprensa relatou casos pontuais
de queimadas que fugiram do
controle, destruindo casas e
matas adjacentes, assim como
o de outras, iniciadas durante
o desastre, em plena área de
risco.
Quem quer que viaje com um
mínimo de regularidade pelo
interior do Brasil não pode
deixar de constatar como as
queimadas da estação seca e as
enxurradas da chuvosa estão
provocando enormes e crescentes danos ao nosso meio ambiente. O aeroporto de Cuiabá,
por exemplo, tem permanecido
fechado boa parte do ano devido à fumaça que encobre a região. O fogo e a erosão são forças conjugadas que se reforçam mutuamente e que estão
assumindo um poder destruidor alarmante.
Mas o que foi realmente estarrecedor no episódio do megaincêndio não foi o fatalismo
cínico do diagnóstico, mas a
catatonia inexplicável da reação. "Não podemos deixar que
esse desastre", declarou ao
mundo o ministro Lampreia,
"se transforme numa confissão
de que não sabemos tomar
conta da Amazônia". Por incrível que pareça, foi subitamente Lula quem se deu ares
de neoliberal: "Em tempos de
modernidade, o nacionalismo
de FHC é tacanho".
Para não incorrer na suposta
humilhação de aceitar ajuda
internacional, o governo ignorou os repetidos alertas da
ONU e mergulhou no vexame
amazônico de sua grotesca imprevidência. Temos às maiores
florestas tropicais do mundo,
temos um problema crônico de
queimadas, mas nenhum
avião, equipamento ou pessoal
treinado para apagar incêndios. Ao El Niño natural juntou-se o El Niño da inépcia e
obscurantismo estatal-militar.
O fato é que a postura letárgica do governo FHC diante do
desastre exalou um inconfundível cheiro de "sarneyzação".
O problema era insolúvel antes
("culpa do El Niño") e somente
se poderia resolver por si mesmo depois ("só a chuva resolve"). Como resumiu o deputado Sarney Filho: "Acho que o
pessoal de Roraima poderia
votar no Menem, que foi o primeiro a dar ajuda".
A tragédia de Roraima é parte de um todo. O voluntarismo
delirante da nova Lei de Crimes Ambientais é apenas o reverso desse mesmo quadro.
Não me considero fatalista,
mas ao ler a profecia feita por
José Bonifácio, o Patriarca da
Independência, em 1822, temo
que o nosso futuro já esteja escrito:
"A natureza fez tudo a nosso
favor, nós porém pouco ou nada temos feito a favor da natureza. Nossas terras estão ermas
e as poucas que temos roteado
são mal cultivadas; nossas preciosas matas vão desaparecendo, vítimas do fogo e do machado destruidor, da ignorância e do egoísmo; nossos montes e encostas vão se escalvando diariamente e com o andar
do tempo faltarão as chuvas
fecundantes, que favoreçam a
vegetação e alimentem nossas
fontes e rios, sem o que o nosso
belo Brasil em menos de dois
séculos ficará reduzido aos páramos e desertos áridos da Líbia. Virá então esse dia (dia
terrível e fatal), em que a ultrajada natureza se ache vingada de tantos erros e crimes
cometidos."
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