São Paulo, quinta-feira, 09 de julho de 2009

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TEATRO

Crítica/teatro

Fermentação da cana vira cenário para trama rodrigueana

Peça usa "Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre, para fazer releitura de "Álbum de Família", de Nelson Rodrigues

LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA

O teatro tem o poder da peste, mas pode também ser o princípio da cura. Com "Memória da Cana", Os Fofos querem purgar um abscesso de séculos, gerado nos engenhos de açúcar do Nordeste brasileiro. Empresta as lentes de Gilberto Freyre, em "Casa-Grande e Senzala", para ler "Álbum de Família", de Nelson Rodrigues. Em 1949, o autor definiu o teatro que estava propondo com "Álbum de Família" como desagradável e pestilento. No início dos anos 80, Antunes Filho explorou nele o seu aspecto mítico. Agora o Nélson pernambucano dos Fofos revela o texto como um retrato exacerbado do patriarcado brasileiro. A encenação de Moreno surpreende ao revelar os personagens da peça, enredados em incestos, paixões e culpas, não como aberrações de uma mente atormentada, mas como resultantes naturais de um ambiente apodrecido pela fermentação da cana. Assim, delimita o espaço cênico com quatro paredes de pés de cana e infesta o ar com o odor ácido do melaço. Tudo que, pelas rubricas da peça, ocorre fora da cena é ouvido pelas frestas dessas paredes. Na primeira parte, em que a proposta se realiza mais plenamente, a família é esmiuçada em profundidade, na medida em que telas vazadas delimitam os cômodos em que cada um dos personagens habita com seus traumas e fantasmas. Na pista de Freyre, que define seu objeto como "um passado que se estuda tocando em nervos", encenam-se os segredos indizíveis e os ressentimentos indeléveis. Um corredor central com uma longa mesa demarca o espaço comum da casa-grande, onde o patriarca cometerá suas atrocidades, sob o olhar submisso de filhos, mulher e lacaios. Em um requinte de teatralidade, uma série de imagens de santos dispostas sobre a mesa, algumas maquinadas como marionetes, reverberam as tensões latentes que a trama de Nélson Rodrigues propõe. Na segunda parte, as telas são arrancadas e uma enérgica mudança cenográfica, denotando a linguagem circense dos Fofos, constrói um espaço vazado em que o elemento predominante é o chão de terra escura. As luzes dos refletores são substituídas por candeeiros e é nesse lusco-fusco sombrio que a tragédia caminhará para o clímax. O desfecho sangrento, em que todo o pus acumulado transborda, é um terreno minado aos encenadores. Moreno se safa ileso, evitando o risco de descambar para o cômico, mas perde, na opção do transe carnavalesco, a nitidez da fábula e, com ela, a força da purgação pretendida. À parte as perdas, o espetáculo faz emergir dos clichês associados a Nelson Rodrigues um novo e límpido olhar, que flagra, sem disfarces, as ásperas raízes da família brasileira.


MEMÓRIA DA CANA
Quando: sex. e sáb., às 21h; dom. e seg., às 19h; até 2/11
Onde: espaço dos Fofos (r. Adoniran Barbosa, 151, 0/xx/11/ 3101-6640)
Quanto: R$ 16
Classificação: 16 anos
Avaliação: bom




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