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TEATRO
Crítica/teatro
Fermentação da cana vira cenário para trama rodrigueana
Peça usa "Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre, para fazer releitura de "Álbum de Família", de Nelson Rodrigues
LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA
O teatro tem o poder da
peste, mas pode também ser o princípio da
cura. Com "Memória da Cana",
Os Fofos querem purgar um
abscesso de séculos, gerado nos
engenhos de açúcar do Nordeste brasileiro. Empresta as lentes de Gilberto Freyre, em "Casa-Grande e Senzala", para ler
"Álbum de Família", de Nelson
Rodrigues.
Em 1949, o autor definiu o
teatro que estava propondo
com "Álbum de Família" como
desagradável e pestilento. No
início dos anos 80, Antunes Filho explorou nele o seu aspecto
mítico. Agora o Nélson pernambucano dos Fofos revela o
texto como um retrato exacerbado do patriarcado brasileiro.
A encenação de Moreno surpreende ao revelar os personagens da peça, enredados em incestos, paixões e culpas, não como aberrações de uma mente
atormentada, mas como resultantes naturais de um ambiente apodrecido pela fermentação da cana. Assim, delimita o
espaço cênico com quatro paredes de pés de cana e infesta o ar
com o odor ácido do melaço.
Tudo que, pelas rubricas da peça, ocorre fora da cena é ouvido
pelas frestas dessas paredes.
Na primeira parte, em que a
proposta se realiza mais plenamente, a família é esmiuçada
em profundidade, na medida
em que telas vazadas delimitam os cômodos em que cada
um dos personagens habita
com seus traumas e fantasmas.
Na pista de Freyre, que define
seu objeto como "um passado
que se estuda tocando em nervos", encenam-se os segredos
indizíveis e os ressentimentos
indeléveis.
Um corredor central com
uma longa mesa demarca o espaço comum da casa-grande,
onde o patriarca cometerá suas
atrocidades, sob o olhar submisso de filhos, mulher e lacaios. Em um requinte de teatralidade, uma série de imagens
de santos dispostas sobre a mesa, algumas maquinadas como
marionetes, reverberam as tensões latentes que a trama de
Nélson Rodrigues propõe.
Na segunda parte, as telas são
arrancadas e uma enérgica mudança cenográfica, denotando a
linguagem circense dos Fofos,
constrói um espaço vazado em
que o elemento predominante
é o chão de terra escura. As luzes dos refletores são substituídas por candeeiros e é nesse
lusco-fusco sombrio que a tragédia caminhará para o clímax.
O desfecho sangrento, em
que todo o pus acumulado
transborda, é um terreno minado aos encenadores. Moreno se
safa ileso, evitando o risco de
descambar para o cômico, mas
perde, na opção do transe carnavalesco, a nitidez da fábula e,
com ela, a força da purgação
pretendida.
À parte as perdas, o espetáculo faz emergir dos clichês associados a Nelson Rodrigues um
novo e límpido olhar, que flagra, sem disfarces, as ásperas
raízes da família brasileira.
MEMÓRIA DA CANA
Quando: sex. e sáb., às 21h; dom. e
seg., às 19h; até 2/11
Onde: espaço dos Fofos (r. Adoniran
Barbosa, 151, 0/xx/11/ 3101-6640)
Quanto: R$ 16
Classificação: 16 anos
Avaliação: bom
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