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CINEMA - "O TEMPO REDESCOBERTO"
Busca de Proust somente evita a calamidade
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
Imaginemos um espectador
que, antes de entrar no cinema
para ver "O Tempo Redescoberto" não saiba quem são a duquesa
de Guermantes ou a Mme. Verdurin, não tenha um mínimo de
familiaridade com os salões literários descritos por Marcel Proust
em seu "Em Busca do Tempo Perdido".
Esse espectador terá pouca ou
nenhuma chance de compreender a narrativa de Raoul Ruiz, que
tem por eixo um Marcel Proust
em seus últimos dias de vida, passando em revista sua existência.
Já o espectador que conheça a
série de livros de Proust, mesmo
que parcialmente, corre talvez o
risco de se desinteressar dessa
narrativa.
Marcel Proust é possivelmente
o mais descritivo dos escritores.
Sua precisão é tamanha que, ao
lê-lo, tem-se a impressão de apalpar os personagens e seus pensamentos.
Por isso, a primeira questão a
endereçar ao filme (e ao cinema
francês em geral) é: qual o sentido
de filmar algo que não serve nem
a quem conhece Proust, nem a
quem não o conhece?
Questão que, no mais, pode ser
endereçada ao conjunto do cinema francês contemporâneo, cuja
capacidade de se endereçar ao público interno ou estrangeiro tem
caído dramaticamente nas últimas décadas.
Estamos no domínio da anti-nouvelle vague, a corrente que
nos anos 60 preconizou um cinema francês capaz de se libertar da
literatura para melhor captar a vida cotidiana.
O filme de Raoul Ruiz -no
mais um cineasta chileno radicado na França, autor de uma obra
fundada sobre pequenos orçamentos- parece ao menos à primeira vista nos aproximar da velha "qualidade francesa", cinema
psicológico cuja principal característica era investir na "profundidade" dos personagens e, em última análise, distinguir-se do cinema americano.
Talvez haja mais do que isso.
Ruiz evita o patético prosaísmo
de "Um Amor de Swann", de Volker Schlöndorff, por exemplo, para realizar um filme meditativo
sobre a obra de Proust e sobre a
idéia do tempo (e da vida) como
entidade fugaz, inapreensível.
Em nossa incapacidade de perceber o correr do tempo, de
apreendê-lo, a lenta transformação das coisas, também esteja, talvez, nossa incapacidade de viver.
A busca do tempo perdido, a luta por apreendê-lo pela memória
e pela escrita fazem o interesse de
Proust.
A tentativa de Ruiz consiste, antes de tudo, em nos oferecer uma
interpretação do trabalho do escritor, antes do que reconstituir
uma história.
Isso evita que seu filme resvale
na literatice e procure dar-se ares
de profundidade (ao contrário, as
observações mais agudas são colocadas em "voz off", na boca de
Proust).
Daí o filme partir de um Proust
moribundo, encontrando o sentido da vida na escrita. Em função
disso é que podemos visitar seus
salões literários, repassar seus encontros com antigas paixões, como Gilberte e Albertine.
De algum modo, Ruiz procura
nos falar do sentido da escrita em
Proust, como memória e esquecimento, como possibilidade de vivenciamento do passado, mas ao
mesmo tempo de superação.
Tudo é ambiguidade nessa história, já que escrever torna-se, no
final, mais importante do que viver. Escrever é viver, a rigor. Ao
mesmo tempo, a escrita se consuma pela morte, tomando ela própria o lugar da vida e transformando-se em livro.
Embora há muito tempo não visite os volumes do gigantesco romance de Proust, a reconstituição
dos ambientes e das personagens
me pareceu não destoar daquilo
que eu poderia imaginar -o que
não é um mérito menor.
No entanto, ao sair do filme,
resta uma impressão de frieza, como se a grande virtude de "O
Tempo Redescoberto" fosse negativa: a capacidade de não criar
uma calamidade, uma mera convenção, ou uma versão arcaizante
da revista "Caras", a partir de
Proust.
Mas a verdade é que nunca, até
hoje, o cinema fez justiça aos
maiores escritores do século 20.
As adaptações de Kafka, Joyce,
Proust e Borges - todos autores
em que o peso da escrita é maior
do que o dos acontecimentos descritos- deixam antes de mais nada a sensação de que o cinema
não é uma arte apta a dar conta da
riqueza de seus textos.
Não se trata obrigatoriamente
de uma deficiência do cinema (o
que seria uma adaptação literária
de "Cidadão Kane", por exemplo?).
Antes, parece que esses são domínios até certo ponto irredutíveis um ao outro. Talvez seja por
isso, no mais, que Luchino Visconti nunca levou adiante seu plano de filmar "Em Busca do Tempo Perdido".
Avaliação:
Filme: O Tempo Redescoberto
Produção: França, 1999
Direção: Raoul Ruiz
Com: Catherine Deneuve, Emmanuelle
Béart, Vincent Pérez, John Malkovich,
Pascal Greggory, Chiara Mastroianni
Quando: a partir de hoje, no Espaço
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