São Paulo, Sexta-feira, 09 de Julho de 1999
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CINEMA - "O TEMPO REDESCOBERTO"
Busca de Proust somente evita a calamidade

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Imaginemos um espectador que, antes de entrar no cinema para ver "O Tempo Redescoberto" não saiba quem são a duquesa de Guermantes ou a Mme. Verdurin, não tenha um mínimo de familiaridade com os salões literários descritos por Marcel Proust em seu "Em Busca do Tempo Perdido".
Esse espectador terá pouca ou nenhuma chance de compreender a narrativa de Raoul Ruiz, que tem por eixo um Marcel Proust em seus últimos dias de vida, passando em revista sua existência.
Já o espectador que conheça a série de livros de Proust, mesmo que parcialmente, corre talvez o risco de se desinteressar dessa narrativa.
Marcel Proust é possivelmente o mais descritivo dos escritores. Sua precisão é tamanha que, ao lê-lo, tem-se a impressão de apalpar os personagens e seus pensamentos.
Por isso, a primeira questão a endereçar ao filme (e ao cinema francês em geral) é: qual o sentido de filmar algo que não serve nem a quem conhece Proust, nem a quem não o conhece?
Questão que, no mais, pode ser endereçada ao conjunto do cinema francês contemporâneo, cuja capacidade de se endereçar ao público interno ou estrangeiro tem caído dramaticamente nas últimas décadas.
Estamos no domínio da anti-nouvelle vague, a corrente que nos anos 60 preconizou um cinema francês capaz de se libertar da literatura para melhor captar a vida cotidiana.
O filme de Raoul Ruiz -no mais um cineasta chileno radicado na França, autor de uma obra fundada sobre pequenos orçamentos- parece ao menos à primeira vista nos aproximar da velha "qualidade francesa", cinema psicológico cuja principal característica era investir na "profundidade" dos personagens e, em última análise, distinguir-se do cinema americano.
Talvez haja mais do que isso. Ruiz evita o patético prosaísmo de "Um Amor de Swann", de Volker Schlöndorff, por exemplo, para realizar um filme meditativo sobre a obra de Proust e sobre a idéia do tempo (e da vida) como entidade fugaz, inapreensível.
Em nossa incapacidade de perceber o correr do tempo, de apreendê-lo, a lenta transformação das coisas, também esteja, talvez, nossa incapacidade de viver.
A busca do tempo perdido, a luta por apreendê-lo pela memória e pela escrita fazem o interesse de Proust.
A tentativa de Ruiz consiste, antes de tudo, em nos oferecer uma interpretação do trabalho do escritor, antes do que reconstituir uma história.
Isso evita que seu filme resvale na literatice e procure dar-se ares de profundidade (ao contrário, as observações mais agudas são colocadas em "voz off", na boca de Proust).
Daí o filme partir de um Proust moribundo, encontrando o sentido da vida na escrita. Em função disso é que podemos visitar seus salões literários, repassar seus encontros com antigas paixões, como Gilberte e Albertine.
De algum modo, Ruiz procura nos falar do sentido da escrita em Proust, como memória e esquecimento, como possibilidade de vivenciamento do passado, mas ao mesmo tempo de superação.
Tudo é ambiguidade nessa história, já que escrever torna-se, no final, mais importante do que viver. Escrever é viver, a rigor. Ao mesmo tempo, a escrita se consuma pela morte, tomando ela própria o lugar da vida e transformando-se em livro.
Embora há muito tempo não visite os volumes do gigantesco romance de Proust, a reconstituição dos ambientes e das personagens me pareceu não destoar daquilo que eu poderia imaginar -o que não é um mérito menor.
No entanto, ao sair do filme, resta uma impressão de frieza, como se a grande virtude de "O Tempo Redescoberto" fosse negativa: a capacidade de não criar uma calamidade, uma mera convenção, ou uma versão arcaizante da revista "Caras", a partir de Proust.
Mas a verdade é que nunca, até hoje, o cinema fez justiça aos maiores escritores do século 20. As adaptações de Kafka, Joyce, Proust e Borges - todos autores em que o peso da escrita é maior do que o dos acontecimentos descritos- deixam antes de mais nada a sensação de que o cinema não é uma arte apta a dar conta da riqueza de seus textos.
Não se trata obrigatoriamente de uma deficiência do cinema (o que seria uma adaptação literária de "Cidadão Kane", por exemplo?).
Antes, parece que esses são domínios até certo ponto irredutíveis um ao outro. Talvez seja por isso, no mais, que Luchino Visconti nunca levou adiante seu plano de filmar "Em Busca do Tempo Perdido".


Avaliação:   


Filme: O Tempo Redescoberto Produção: França, 1999 Direção: Raoul Ruiz Com: Catherine Deneuve, Emmanuelle Béart, Vincent Pérez, John Malkovich, Pascal Greggory, Chiara Mastroianni Quando: a partir de hoje, no Espaço Unibanco 2

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