São Paulo, Sexta-feira, 09 de Julho de 1999
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RECEITAS DO MELLÃO
Os quitutes do major Synésio

HAMILTON MELLÃO JUNIOR
Colunista da Folha

Em prístina época, conheci o major Synésio Vilella num encontro de euclidianos em Americana (SP). Desde então, recebo mensalmente suas saborosas missivas. Temos algumas divergências por ele ser positivista ferrenho, mas nada que a sensatez não possa sublimar.
Homem de tirocínio, destacou-se como soldado, médico e fazendeiro. Hoje, se dedica ao estudo dos textos apócrifos da "Bíblia", além de cultuar "Os Sertões", cujas páginas sabe de memória.
No início de junho, recebemos um telegrama intimando-nos a comparecer em suas terras para a festa de Santo Antônio. A questão é que ele tem três filhas solteiras já bem passadas dos 50 (com enxovais plenos de naftalina), e Synésio não quer desencarnar sem vê-las de anel na mão esquerda.
Chegamos lá no dia 13, com a festa já armada. Synésio é um ser canicular e em segundos nos mesclamos a centenas de anos de memórias: os moleques tentando alcançar o saco de moedas no pau de sebo, a fogueira de 12 metros de altura, outra menor, para o salto dos mais atrevidos. E as pessoas se chegando ao enorme mastro de Santo Antônio para receber o pão bento do padre jesuíta.
Os caipiras travestidos de caipiras se divertiam com os dançantes do cateretê, marcando o ritmo com palmas.
Mas confesso que o prazer maior foi o de nos esbaldarmos nos quitutes preparados pelas doceiras: compotas de cambuçá, cagaíta, guariroba e araçá; doces de jenipapo, umbu e uvaia; bolos de fubá com erva doce, de coco com milho verde e de mandioca. A biscoitada incluía brevidades, mentirinhas e bolachas de pinga.
Para beber, cachaça com cambuci, sucos de feijoa, cabeludinha, cajá, abiu e mangaba. Licores de gruximana, de pitanga e de jabuticaba branca prometiam rebater os excessos.
Estranhei a ausência de rojões e sanfoneiros. Synésio me explicou que o estrondo dos fogos perturba a manutenção do "pax" original e os gaiteiros (como ele diz) "manguaçam muito e querem fazer vergonha nas mulheres".
Finalmente chegou o aguardado violeiro, e a festa se aquietou em torno dele, de seus repentes e da poesia roceira. O tempo passou, até que se ouviu o canto de um galo pedrês anunciando que a noite já era defunta.
Despedimo-nos ainda estupefatos diante de tanta belezura, deixando para trás lavouras de sonho adubadas com bombas de estalo e fogos de artifício.
Trouxe comigo, anotadas, algumas quadras do violeiro Boca Rica, que faço questão de reproduzir aqui:
"A vida da gente pobre
padece, não tem altura.
A vida da gente rica
arregala e tem fartura."

Quer tentar os doces? Junte um quilo de polpa de fruta com 900 g de açúcar, leve ao fogo, mexa até dar ponto, espere esfriar, ponha em potinhos, guarde em geladeira e espere 13 de junho chegar.


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