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RODAPÉ
Poesia sem preguiça
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
A editora Hedra acaba de
lançar o selo de poesia "A
Preguiça Editorial". Não é fácil
compreender a razão desse nome.
O release faz uma vaga referência
ao bicho-preguiça, associando-o
a um suposto "ritmo brasileiro".
Mas o leitor que não tiver acesso
ao material de imprensa distribuído pela editora dificilmente conseguirá deduzir qual o significado
desse título, já que os livros da coleção tampouco trazem explicações (salvo um grafismo no canto
da capa que representa o sonolento animal).
De minha parte, associo essa
preguiça editorial à "macchina pigra" de Umberto Eco, para quem
todo texto é uma máquina preguiçosa que exige que o leitor realize uma série de operações interpretativas, sem as quais seu significado seria parcial, ininteligível
ou mesmo equivocado.
A definição do ensaísta italiano
vale para todo tipo de texto, mas é
especialmente pertinente para a
poesia, gênero no qual cada palavra adquire um sentido específico, uma autarcia semântica. E são
essas ilhas de significação que observamos nos primeiros volumes
do selo: "O Sobrevivente", de Fabrício Corsaletti, "Azul Escuro",
de Alexandre Barbosa de Souza, e
"Descort", de Dirceu Villa.
Disponho os livros nessa ordem
porque assim eles descrevem uma
curva ascendente de complexidade (mas não necessariamente de
qualidade).
No caso de "O Sobrevivente", as
duas partes do livro apontam para uma experiência poética cada
vez mais trabalhada. Na primeira
seção, Corsaletti adota uma dicção econômica: "A única/ maneira de/ mostrar o osso/ desta/ perna sangrando// é arrancando/ a
perna/ comendo-a/ crua", escreve
no poema de abertura. E os poemas seguintes se desenvolvem
numa série de versos epigramáticos, que lembram o lirismo concentrado e juvenil da chamada
"geração mimeógrafo": "A ternura/ como último desdobramento
da revolta".
Na segunda parte, contudo, a
invenção de Corsaletti se intensifica, com versos feitos a partir de
cacos da memória ("Memória dos
Dias Comuns") ou num poema
como o que dá título ao livro, no
qual imagens de animais decompostos ("O polvo repugnante./ O
peixe-boi estufado./ O leão-marinho de petróleo./ A vaca sobre a
cama de casal.") dão lugar a "epílogos possíveis" que conectam a
poesia a uma leveza que sobrevive
à viscosidade do real: "O mundo é
dos peixes magros./ Das aves migratórias./ Dos homens que cantam".
Em "Azul Escuro", a lapidação
do texto é mais exuberante. Alexandre Barbosa de Souza busca
correspondências simbolistas entre objetos e estados de espírito. É
uma poesia invocativa, com um
léxico intencionalmente rebuscado ("Verbete") e que nos melhores momentos tem um ritmo cadenciado que, sem se submeter à
rigidez da metrificação tradicional, cria silogismos rimados, extemporâneos na forma e universais no conteúdo: "Embalado na
doçura,/ Que não dura seu indício,/ Sacrifício, desventura,/ Criatura só, de início.// Silêncio do que
não vi,/ A vida no seu avesso./ Por
sorte, que não vivi,/ A morte, que
não esqueço." ("Tristeza").
"Descort", finalmente, é o livro
mais difícil da primeira leva do selo "A Preguiça Editorial". A profusão de formas vai do poema-piada modernista ao hermetismo,
da citação erudita ao "ready made", como no poema "E Mais uma
Arte Poética", em que uma sequência de versos metalinguísticos ("A técnica vem em primeiro
lugar;/ a precisão em segundo;/ a
potência bem mais tarde") é arrematada por uma irônica indicação bibliográfica ("- de um livro
sobre/ como jogar tênis").
Dirceu Villa vai semeando armadilhas: cita Laforgue e Corbière; evoca a poesia provençal e o último suspiro de Goethe; escreve
versos em francês, latim e grego.
Por trás da pomposa erudição,
porém, há um espírito satírico
que está mais para Baudelaire e
Jarry. Uma poesia exigente, que
não admite leitores preguiçosos.
O Sobrevivente
Autor: Fabrício Corsaletti
Quanto: R$ 10 (56 págs.)
Azul Escuro
Autor: Alexandre Barbosa de Souza
Quanto: R$ 10 (56 págs.)
Descort
Autor: Dirceu Villa
Quanto: R$ 10 (80 págs.)
Editora: Hedra (as três obras)
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