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São Paulo, sábado, 09 de agosto de 2003

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ARTES
Pesquisador lança debate sobre autoria de obras do pintor espanhol

Livro levanta suspeita sobre "pinturas negras" de Goya

Reprodução
TERROR "Saturno Devorando um Filho", uma "pintura negra" de Francisco de Goya


ARTHUR LUBOW
DO "NEW YORK TIMES"

Venerado como o primeiro artista moderno, Francisco de Goya y Lucientes (1746-1828) não produziu nada de mais abrasivamente moderno do que a série de 14 imagens conhecidas como "as pinturas negras", que meio século depois de sua morte foram cortadas das paredes de sua casa de campo nas cercanias de Madri. Mesmo hoje, quando as contemplamos no Museu do Prado, essas visões apavorantes são perturbadoras.
Assim, faz perfeito sentido que a Scala Publishers, que se especializou em livros de arte e catálogos de museus, encomende um livro sobre as pinturas. Para escrevê-lo, o editor Antony White selecionou Juan José Junquera, professor de História da Arte na Universidade Complutense, de Madri, que esquadrinhou o registro documental e percebeu um problema sério.
A ausência de referências ou dados torna impossível atribuir-lhes datas exatas. Acredita-se que tenham sido realizadas entre 1820 e 1823. Mas nos contratos de compra da propriedade por Goya, na escritura de transferência ao seu neto Mariano -em 1823, um ano antes da viagem de Goya a França, onde morreu em 1828- e num relato sobre a casa à época do casamento de Mariano, não há nenhum registro de um segundo andar, justamente onde as "pinturas negras" foram achadas. Se o segundo pavimento foi acrescentado à casa mais tarde, depois da morte de Goya, o pesquisador se vê forçado a deduzir que Goya não criou as "pinturas negras".
Há apenas duas descrições publicadas das pinturas por contemporâneos de Goya. A primeira, foi supostamente escrita na década de 1820, mas só foi publicado em 1928. Ela reconhecia 15 quadros -um a mais do que o número conhecido atualmente- na sala de jantar do primeiro pavimento e no primeiro andar. O segundo registro é um artigo publicado em 1838 por Valentin Carderera, artista e colecionador, que afirma que, no retiro de Goya, "há poucas paredes que não estejam enfeitadas com caricaturas ou trabalhos de fantasia, incluindo as laterais da escadaria".
Excetuadas duas avaliações breves de críticos de artes contratados na década de 1850, quando a casa foi colocada à venda, não há uma palavra sequer na literatura sobre as "pinturas negras" até que o estudioso francês de arte Charles Yriarte as descreveu, com reproduções xilográficas, em um livro sobre Goya que ele publicou em 1867, em Paris. O público só as pode ver depois que o barão d'Erlanger adquiriu a casa e contratou um pintor e restaurador, Salvador Martinez Cubells, para removê-las das paredes. As "pinturas negras" foram exibidas na Exposição Universal de Paris, em 1878, e a seguir doadas ao Prado.
Junquera rebate a descrição de Carderera, que aponta uma escadaria. "Era bastante rústica e conduzia ao sótão". A escadaria na Quinta de dois andares, tal como descrita na década de 1850, foi acrescentada por Javier, o filho de Goya, ou por Mariano. "Ela está descrita com precisão no inventário", diz Junquera, se referindo a um relato posterior sobre a casa, em 1854, quando da morte de Javier. "É uma escadaria que conhecemos como imperial, com dois lances. Carderera fala de pinturas na escadaria, mas os documentos do notário descrevem apenas uma grande escultura, um busto de Goya, no sopé das escadas. Isso é tudo. Pintura nenhuma". As pinturas nas paredes descritas por Carderera não são as "pinturas negras", diz ele. Tratavam-se de "temas muito alegres, imagens de costumes locais, de pessoas que Goya conhecia", e em algum momento foram destruídas. O veredicto a que ele chegou: "as pinturas são falsas". "Se os andares superiores não existiam na época de Goya, evidentemente não foi Goya quem as pintou", diz.
Mesmo assim, escreveu o livro "The Black Paintings of Goya", que sai neste trimestre. No trabalho, ele expõe os indícios que descobriu, mas se recusa a concluir que os trabalhos não são de Goya. Como resultado de sua deliberada falta de foco, a maior parte dos leitores provavelmente desconsiderará a opinião iconoclasta do autor. De fato, até mesmo o editor Antony White a deixou passar sem comentários até que Junquera o alertasse. "Não foi uma descoberta muito bem-vinda, mas ele ainda assim mereceu todo o nosso respeito", comenta White, com humor seco. E perguntou a Junquera: "se não Goya, quem?"
Junquera estudou a lista de suspeitos até chegar a um pintor que tinha acesso à Quinta e conhecia a obra e a técnica do mestre: Javier, o filho de Goya. "Creio que ele tenha pintado por prazer", diz.
E por que as obras foram catalogadas como se fossem de Goya? Junquera chegou ao neto, o filho único de Javier, Mariano. Perdulário e cronicamente necessitado de fundos, Mariano teria podido obter preço mais alto pela casa se atribuísse as pinturas, que sabia terem sido executadas por seu pai, ao grande Goya.
Javier era suspeito por ter acesso e motivo. Mas suas credenciais artísticas são, na melhor das hipóteses, frágeis. Nenhum trabalho seu é conhecido, e dele restam apenas poucos documentos.
Um estudioso que dependa primordialmente de um exame detalhado de obras de arte encontra dificuldades sérias no caso das "pinturas negras". Todos concordam em que aquilo que vemos hoje é na melhor das hipóteses um fac-símile grosseiro do que Goya "pintou". Nigel Glendinning, professor emérito da Universidade de Londres que vem escrevendo sobre Goya há 40 anos, foi um dos pioneiros na determinação do provável arranjo das pinturas nas paredes da Quinta. Estudando fotografias de J. Laurente que se acredita datem da década de 1860, ele também comparou o que vemos agora com o que havia antes do trabalho de Martinez Cubells, que na década de 1870 retirou as pinturas das paredes e as afixou em telas. "Não surpreende que a restauração tenha incluído mudanças extensas e nova pintura em escala considerável", diz Glendinning. Exames com raios-X revelam imagens diferentes sob algumas das "pinturas negras", o que aumenta a incerteza. "Há muitos motivos, no caso das "pinturas negras", para que reservemos nosso veredicto", diz. "Mas acredito que Junquera seja a primeira pessoa a declarar, por escrito, que não são de Goya".

Tradução Paulo Migliacci


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