São Paulo, sexta-feira, 09 de setembro de 2005

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"MEMÓRIA DE QUEM FICA"

Boa intenção não salva filme sobre atentado na Argentina

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN

Boas intenções não fazem necessariamente bom cinema, mas podem se prestar a construir um manifesto por justiça ou servir de documento histórico.
É esse o caso de "18-J", que estréia aqui com o pouco imaginativo título "Memória de quem Fica". Realizado em 2004 por um coletivo de dez cineastas argentinos, a intenção era marcar os dez anos do atentado à Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), no bairro do Once, no centro de Buenos Aires, que deixou, em 18 de julho de 1994, 85 mortos e mais de 300 feridos.
A maioria dos esquetes, televisivos na forma e na linguagem, trazem episódios familiares e emotivos -bem ao estilo do chamado novo cinema argentino- que ocorrem poucos momentos antes, ou durante, a explosão.
É o caso do episódio "La Ira de Díos", de Marcelo Schapces, que conta a história de um garoto que causa desgosto à família por não querer fazer o bar-mitzva. Revoltado, ele entra no quarto e joga a Bíblia contra a parede. Na mesma hora, ocorre o atentado. Ele caminha entre os escombros da casa e os corpos dos familiares, achando que a culpa foi dele, por ter provocado Deus com sua rebeldia.
Em "Sorpresa", de Adrián Suar, uma família judaica celebra a cerimônia de circuncisão de um bebê. Um dos tios, que apareceria de surpresa, entretanto, deixa de comparecer. Dez anos depois, o bebê, já um menino, assiste ao vídeo que o tio gravou instantes antes de entrar no prédio da Amia.
Curiosamente, vários episódios fazem referência ao fato de o Brasil estar celebrando o dia seguinte da conquista da Copa do Mundo dos EUA, contra a Itália. Num deles, um grupo de garotos, no banheiro da escola, ironiza a conquista brasileira pelo fato de ter sido nos pênaltis, instantes antes de o prédio tremer com as bombas.
Noutro, um casal de idosos que se prepara para viajar a Israel para visitar a filha ouve as manchetes no rádio. A primeira é a vitória do Brasil, a segunda, a de um novo atentado em Jerusalém. Preocupada, a mãe liga correndo para a filha, querendo saber se ela está bem. Ironicamente, alguns dias depois, é a própria filha quem viaja a Buenos Aires, pois os pais morreriam no atentado.
Daniel Burman opta por um quase-documentário em que entrevista personagens que hoje vivem no Once. São comerciantes e estrangeiros que compõem também a matéria-prima do cinema do próprio diretor, que nasceu no bairro e deu vida a ele em filmes como "Abraço Partido" (2004).
Poucos fazem referência direta à questão política, à exceção de "Vergüenza", de Alejandro Doria, em que a atriz Susú Pecoraro caminha em meio a recortes de jornais e fala das suspeitas de encobrimento por parte do governo do então presidente Carlos Menem e acusa a Justiça pela ineficiência em resolver o caso.
O crime, atribuído a grupos extremistas islâmicos, continua em aberto até hoje e ninguém foi responsabilizado pelo ataque.
Cheio de altos e baixos e marcado por um olhar muitas vezes ingênuo e sentimentalista, o filme pode arrancar lágrimas, mas certamente presta um serviço à história local, além de nos lembrar de que nosso cantinho do mundo não está necessariamente longe do poder de alcance do terror.


Memória de Quem Fica
18-J
  
Direção:
Daniel Burman, Adrián Caetano, Lucía Cedrón, Alejandro Doria, entre outros
Produção: Argentina, 2004
Com: Federico Barga, Sandra Seco
Quando: a partir de hoje no HSBC Belas Artes e Pátio Higienópolis



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