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"MEMÓRIA DE QUEM FICA"
Boa intenção não salva filme sobre atentado na Argentina
SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN
Boas intenções não fazem necessariamente bom cinema,
mas podem se prestar a construir
um manifesto por justiça ou servir de documento histórico.
É esse o caso de "18-J", que estréia aqui com o pouco imaginativo título "Memória de quem Fica". Realizado em 2004 por um
coletivo de dez cineastas argentinos, a intenção era marcar os dez
anos do atentado à Associação
Mutual Israelita Argentina
(Amia), no bairro do Once, no
centro de Buenos Aires, que deixou, em 18 de julho de 1994, 85
mortos e mais de 300 feridos.
A maioria dos esquetes, televisivos na forma e na linguagem, trazem episódios familiares e emotivos -bem ao estilo do chamado
novo cinema argentino- que
ocorrem poucos momentos antes, ou durante, a explosão.
É o caso do episódio "La Ira de
Díos", de Marcelo Schapces, que
conta a história de um garoto que
causa desgosto à família por não
querer fazer o bar-mitzva. Revoltado, ele entra no quarto e joga a
Bíblia contra a parede. Na mesma
hora, ocorre o atentado. Ele caminha entre os escombros da casa e
os corpos dos familiares, achando
que a culpa foi dele, por ter provocado Deus com sua rebeldia.
Em "Sorpresa", de Adrián Suar,
uma família judaica celebra a cerimônia de circuncisão de um bebê.
Um dos tios, que apareceria de
surpresa, entretanto, deixa de
comparecer. Dez anos depois, o
bebê, já um menino, assiste ao vídeo que o tio gravou instantes antes de entrar no prédio da Amia.
Curiosamente, vários episódios
fazem referência ao fato de o Brasil estar celebrando o dia seguinte
da conquista da Copa do Mundo
dos EUA, contra a Itália. Num deles, um grupo de garotos, no banheiro da escola, ironiza a conquista brasileira pelo fato de ter sido nos pênaltis, instantes antes de
o prédio tremer com as bombas.
Noutro, um casal de idosos que
se prepara para viajar a Israel para
visitar a filha ouve as manchetes
no rádio. A primeira é a vitória do
Brasil, a segunda, a de um novo
atentado em Jerusalém. Preocupada, a mãe liga correndo para a
filha, querendo saber se ela está
bem. Ironicamente, alguns dias
depois, é a própria filha quem viaja a Buenos Aires, pois os pais
morreriam no atentado.
Daniel Burman opta por um
quase-documentário em que entrevista personagens que hoje vivem no Once. São comerciantes e
estrangeiros que compõem também a matéria-prima do cinema
do próprio diretor, que nasceu no
bairro e deu vida a ele em filmes
como "Abraço Partido" (2004).
Poucos fazem referência direta
à questão política, à exceção de
"Vergüenza", de Alejandro Doria,
em que a atriz Susú Pecoraro caminha em meio a recortes de jornais e fala das suspeitas de encobrimento por parte do governo
do então presidente Carlos Menem e acusa a Justiça pela ineficiência em resolver o caso.
O crime, atribuído a grupos extremistas islâmicos, continua em
aberto até hoje e ninguém foi responsabilizado pelo ataque.
Cheio de altos e baixos e marcado por um olhar muitas vezes ingênuo e sentimentalista, o filme
pode arrancar lágrimas, mas certamente presta um serviço à história local, além de nos lembrar
de que nosso cantinho do mundo
não está necessariamente longe
do poder de alcance do terror.
Memória de Quem Fica
18-J
Direção: Daniel Burman, Adrián
Caetano, Lucía Cedrón, Alejandro Doria,
entre outros
Produção: Argentina, 2004
Com: Federico Barga, Sandra Seco
Quando: a partir de hoje no HSBC Belas
Artes e Pátio Higienópolis
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