São Paulo, Quinta-feira, 09 de Setembro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Mademoiselle Cinema" é best-seller moralista

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

É engraçado, para não dizer cômico, que um livro como "Mademoiselle Cinema", de Benjamim Costallat, best-seller apreendido nos anos 20 a pedido de uma certa Liga da Moralidade que o considerou "pornográfico", possa ter sido visto em algum momento da história da humanidade como imoral. Porque simplesmente não poderia haver livro mais moralista do que este.
Costallat (1897-1961) era um homem de jornal, romancista, editor e cronista da vida carioca nos anos 20, além de redator de publicidade, responsável pelos anúncios do pó-de-arroz Lady e do tônico Neurobiol, entre outros, como relata a pesquisadora Beatriz Resende no prefácio à nova edição, sob os cuidados da Casa da Palavra.
Lançado em 1923, "Mademoiselle Cinema" vendeu 75 mil exemplares em cinco anos, o maior sucesso editorial da época. Em 1924, Carmen Santos deu início às filmagens de uma adaptação do romance, interrompidas definitivamente por um incêndio que destruiu os estúdios da atriz.
No mesmo ano, já na terceira edição e com 25 mil exemplares vendidos, "Mademoiselle Cinema" entra para a história das peculiaridades brasileiras: oficiais da polícia, a pedido dessa nebulosa sociedade chamada Liga da Moralidade, apreendem os três únicos exemplares restantes em uma livraria do centro do Rio, prendendo ao mesmo tempo o proprietário e seu assistente.
O episódio só pode ter feito bem a esse livro de um moralismo provinciano e constrangedor, nem que seja por tê-lo tornado curiosidade histórica, merecedor de uma nova edição 75 anos depois de seu lançamento, com a chancela de vítima da censura, e fazê-lo passar pelo que nunca foi, por obra escandalosa e progressista no seu ataque à hipocrisia local.
A melhor definição das intenções do romance fica com o próprio autor, ao reagir ao episódio da apreensão, em texto incluído ao final da nova edição: "É em juízo que vou defender esta "Melle. Cinema", produto do meu amor à verdade, do meu desprezo pela hipocrisia, da minha veneração pela família brasileira, que eu quis defender mostrando a nu a triste época e os tristes costumes por que passamos (...), porque o livro nada tem de imoral".
O que é, afinal, esse "Mademoiselle Cinema" que defende a família brasileira ao pôr a nu os tristes costumes da época?
O romance conta a história de Rosalina, uma moça fútil, volúvel e inconsequente de 17 anos, filha de um político do Piauí que chegou a ministro, corrompida pelos ares devassos do seu tempo e da sua classe burguesa. Ao final de seu mandato no governo, o pai de Rosalina parte com mulher e filha para Paris, onde vai acabar morrendo de um ataque, durante uma de suas visitas vespertinas a bordéis.
Antes de descobri-lo morto na cama de uma prostituta e chegar ao arrependimento provocado pela consciência da tragédia do seu próprio destino, Rosalina ainda vai ter tempo de perder a virgindade para um escritor mais velho, no navio a caminho da Europa -e depois esnobá-lo, levando-o a afogar suas mágoas na cocaína- , e de aprontar tanto quanto na inconstância dos seus flertes cariocas.
Ao final, ela diz: "Não tenho culpa se sou assim (...). Essa necessidade de ter muitos amantes, como a de ter muitos vestidos novos, essa necessidade de prazer e de luxo, deram-ma, como me podiam ter dado a necessidade de ser honesta, de ter uns filhos e um marido a quem eu quisesse com a minha alma e com o meu coração (...) desde criança, foram, pouco a pouco, por uma sábia educação, excitando todos os meus sentidos". Conclusão: É tudo uma questão de educação.
"Mademoiselle Cinema" é um romance didático, quase um manual corretivo. O objetivo de Costallat é denunciar a burguesia hipócrita valendo-se do mesmo moralismo que ela usa para sustentar suas aparências. O livro inverte esse moralismo contra os que o professam da boca para fora, mas não na prática. Só que nessa inversão ele não condena o moralismo, apenas ataca os "falsos moralistas" por não cumprirem a cartilha que defendem e, com isso, acaba se tornando o mais moralista de todos, uma espécie de inquisidor dos costumes da época.
Para Costallat, por exemplo, todas as parisienses ou são putas ou são peruas, e em geral as duas coisas, mulheres fúteis que vivem de fazer compras e do dinheiro dos amantes cujas "garçonnières" frequentam por algumas horas diárias. Paris torna-se, assim, uma espécie de Sodoma e Gomorra, um mal dos tempos a ser erradicado, modelo para a burguesia brasileira corrompida e devassa.
Os únicos que se salvam dessa bandalheira toda são os puros operários que acordam cedo (enquanto a parisiense -leia-se puta- dorme) e vão trabalhar "rindo, alegres, barulhentos. A vida recomeça! E com a vida, o sol e o trabalho. Os pulmões enchem-se de ar puro. Os homens estão contentes e as próprias cousas parecem sorrir".
É difícil imaginar um ponto de vista mais retrógrado, provinciano, misógino e machista, ainda mais quando se pensa que, exatamente na mesma época e graças a uma certa liberalidade desfrutada pelos artistas e intelectuais devassos dessa Sodoma que Costallat tanto condena, um sujeito chamado James Joyce estava publicando o seu "Ulysses", este sim um romance do seu tempo e uma vítima real da censura.


Avaliação:  

Livro: Mademoiselle Cinema Autor: Benjamim Costallat Lançamento: Casa da Palavra Quanto: R$ 24 (168 págs.)


Texto Anterior: Trecho
Próximo Texto: Veneza: Korine leva Dogma ao cinema dos EUA
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.